sexta-feira, 7 de junho de 2019

30 de abril 2019

[Caminhar oblíquo 05] Quando acordo o ruído do rio Côa parecia bem menor do que estava na noite anterior. Talvez o caudal tivesse baixado consideravelmente, motivado pelo fecho das comportas na barragem do Sabugal. Não hesitei e iniciei a marcha em direção a Pinhel, num desvio considerável em relação aos meus planos iniciais. Durante toda a viagem apenas previra passar por duas sedes de concelho, Porto de Mós, onde faria um reabastecimento alimentar, e Mafra, já próximo do fim da viagem.
Rio Côa. Figueira de Castelo Rodrigo/Pinhel. 30 de abril de 2019
O dia seria tranquilo, sem desníveis acentuados que não fosse este de subir a Milheiro, um lugar muito pequeno, daí seguir até à estrada que seguia para Pinhel, descer novamente à cota do Côa e finalmente uma subida lenta, por estrada, vencendo um desnível acumulado de cerca de 300 metros. Daí em diante as diferenças de cota seriam pouco acentuadas até atravessar a linha ferroviária da Beira Alta que aqui atinge, numa curva acentuada, o ponto mais a norte de todo o seu itinerário. Depois começaria a descer em aproximação ao rio Mondego.
Milheiro. Figueira de Castelo Rodrigo. 30 de abril de 2019
Atravessava um mundo rural que teve o seu apogeu na década de 1950 e início da seguinte, quando o país estava completamente fechado ao exterior, “orgulhosamente só”. As imagens de uma ruralidade aparentemente equilibrada, que produziu notáveis obras de arquitetura integrada na paisagem, edificada com os materiais da terra, era afinal o reverso de uma pobreza muito acentuada e da fome que grassava neste mundo de prisioneiros. A arquitetura, o desenho extremo das paisagens agrícolas, não era o produto de um ato deliberado de integração, eram uma necessidade, quase como uma condição animal sobrevivente num limbo. Sem dúvida que se desenvolveu um saber notável, quase se puseram as pedras a “dar” batatas e cenouras. Qualquer pedaço de terra arável era cultivada. Mas era como um mundo de ilusão. Assim que o regime político começou a abrir brechas, provocadas pela sua própria insustentabilidade, teve início a passagem da fronteira a salto. A emigração foi crescendo na direta proporção em que as terras se começaram a esvaziar. Muita gente resistiu, também pela chegada das remessas que os familiares enviavam. Foi um mundo que se manteve, sempre em perda. No final da década de 1960 estavam a ser construídas novas casas, eram introduzidas novas arquiteturas, novos materiais. A imagem das aldeias começava a mudar. Hoje, mesmo este mundo das casas dos emigrantes está em perda, tudo está em transformação. A memória da fome continua a passar para as gerações mais novas, que rejeitam esta ruralidade, a escravatura da terra. E é esta terra que agora atravesso na aproximação lenta à serra da Estrela.
Pinhel. 30 de abril de 2019
Há estradas que serpenteiam por estes territórios, que tudo ligam. Quilómetros que se sucedem sem que praticamente ninguém passe. Esta rede viária é uma teia que se afeiçoa ao terreno, que sugere caminhos menos óbvios, desvios, alguns para a perdição. O caminhar a pé mostra-nos uma realidade que, sobre rodas, é trespassada pela vertigem da velocidade. Há um imenso detalhe em tudo à nossa volta, como se cada elemento da matéria nos contasse a história de todos estes mundos em ligação. Redes sobre redes. Uma parte da liberdade que vivemos poderá estar na abstração de todas estas direções, mantendo-nos concentrados na ausência, a janela aberta, que afinal, não existe.
Maçal do Chão, prox. 30 de abril de 2019
Muitos quilómetros em asfalto vago. Algumas passagens por povoados. Pala, Ervas Tenras, Cerejo. Quando passo em Velosa, Celorico da Beira, abasteço de água. A tarde estava avançada. Desde a alvorada já percorrera mais de 45 quilómetros. Ainda antes de chegar a Açores, procuro um local de pernoita. Escolho um terreno relativamente perto da estrada com uma vista muito abrangente sobre o vale aberto da Ribeira da Velosa. Diante de mim tenho a A25, numa curva larga que antecede, para quem vem de poente, uma longa subida em direção à Guarda. Depois de um dia de silêncio tenho agora a companhia ruidosa dos motores dos automóveis e dos camiões. Um país de contrastes, de velocidades díspares. Esta viagem seria também feita desta matéria de realidade célere, que não se quer esconder. São os tão diferentes mundos que cada um de nós traz dentro de si. Se ali, de onde observo a autoestrada, pensar num desses condutores e no seu mundo em passagem e quão diferente será a sua condição da minha própria, ali em solidão. Adormeço a ouvir a circulação automóvel, que parece ser acentuada pelo cair da noite. Pontualmente acordo. Na madrugada regressara o silêncio, entrecortado por algum condutor solitário de olhos fixos no seu próprio clarão.
Açores, prox. Celorico da Beira. 30 de abril de 2019
Açores, prox. Celorico da Beira. 30 de abril de 2019

Dia: 2019/04/30, terça-feira
Lugar referência: Pinhel
Pernoita: Açores, Celorico da Beira
Quilómetros percorridos: 46,5
Quilómetros acumulados: 97,2
Concelhos atravessados: Figueira de Castelo Rodrigo; Pinhel; Trancoso; Celorico da Beira
Cartas militares: 171; 182; 181; 192
Fotografia inicial: dg897679, 06h15
Fotografia final: dg898140, 20h34
Duração trabalho fotográfico: 14h19
Fotografias: 462
Somatório fotografias: 1357
Fotografias selecionadas: 118 (25,5%)

3 comentários:

  1. Ao rever há uns dias a série documental que a RTP fez sobre a emigração portuguesa, percebi algo que não sabia - que a Ditadura não se opunha tanto à emigração dos que tinham alguma instrução como à de quem não tinha nenhuma ou quase nenhuma. Aos olhos do sistema, os agricultores (pobres) não podiam deixar o país. Hoje, 75 anos depois, parece-nos difícil acreditar, cruel quase, que um país prenda na miséria a sua população. Mas explica, em parte, o território que temos. Obrigada, Duarte, por este relato.

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  2. Zona que conheço bem. Mas não como a descreves tão bem. Parabéns!

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