[Caminhar oblíquo 09] Neste deserto de montanhas, de terras pobres, acentua-se o sentimento de solidão. Uma certa e momentânea monotonia da paisagem remete-nos, ocasionalmente, para essas outras paisagens interiores, para quem nos é próximo e com quem agora não me é possível comunicar. Em tempos não muito distantes, antes do aparecimento generalizado dos telemóveis, era normal estar uma semana incontactável, ou ter que recorrer a um telefone público, numa qualquer povoação, para comunicar com a família e amigos, dizer que estava tudo bem. O mundo era diferente. Agora ganhámos alguma dependência das comunicações à distância e do acesso à informação. Uma das dificuldades sentidas neste isolamento, foi essa impossibilidade de comunicar, por ter que manter o telemóvel desligado. Partira apenas com uma carga de telemóvel para os, estimados, 15 a 17 dias de viagem. Não faria recarregamentos pelo caminho. Era uma imposição de partida, uma exigência de disciplina, entre tantos outros aspetos da diferença para os dias comuns. Claro que havia soluções de recurso, como uma fonte de energia portátil, vulgo power-bank, ou o levar um carregador e ligar o telemóvel à corrente num café ou num restaurante. Ou transportar um painel solar, que, confesso, nunca testei. Mas todas estas soluções acrescentavam peso à mochila, ao que teria de transportar às costas.
Ceiroco, prox., Arganil. 4 de maio de 2019 |
Nestas questões básicas, como o viver sem eletricidade, encontrava uma marca forte deste exercício, deste caminhar. Era como se toda a humanidade estivesse num processo de afastamento a um ponto de partida como as grandes viagens do povoamento planetário, de há 70.000, 60.000 anos, ou da memória que muitas vezes não se viveu e que, agora, muito pontualmente, aqui reencontrava. Eram estes pontos de contacto que definiam a maior e mais cósmica viagem.
Braçal, prox., Góis/Pampilhosa da Serra. 4 de maio de 2019 |
Agora atravessava territórios "vazios", acentuadamente despovoados. As marcas de fogos recentes, particularmente de 2017, continuam muito presentes nesta paisagem. Mesmo nalguns troços de estrada asfaltada que percorri, eram raras as viaturas a circular. Não havia uma sombra.
Braçal, prox., Góis/Pampilhosa da Serra. 4 de maio de 2019 |
Os territórios de cume, no Portugal atual, são habitados por uma outra realidade: as torres eólicas. Este fora um dia praticamente todo ele passado na companhia destas unidades de produção elétrica. Vistas ao longe, parecem evocar os antigos moinhos de vento, para moer cereais. Mas se virmos estes moinhos tradicionais perto de uma torre eólica imediatamente percebemos a diferença. As escalas não são comparáveis. O nível de ruído impressiona. Passei a noite na proximidade de uma destas torres. O ruído é perturbador e ouve-se a distâncias enormes. É uma cadência continuada que despertará um sentimento de defesa contra a tempestade. Sim a energia é necessária e esta é uma fonte limpa e renovável, que não provoca efeito de estufa ou o aquecimento global. Mas o preço a pagar não é baixo, mesmo que a maior parte da população não o sinta. E esse preço é o da uniformização da paisagem de um país. Hoje, quando percorremos Portugal, sobretudo no norte, não há, praticamente, horizonte que não esteja povoado de “ventoinhas”. Com as centrais eólicas vem o acesso ao topo das serras que, num passado recente, apenas eram procuradas por quem desejava mesmo ir lá acima, fosse para atividades agrícolas, ligadas sobretudo à pastorícia, ou a simples vontade de conhecer o topo das montanhas. Havia paisagens de uma extrema diversidade. Hoje parece haver um desenho uniformizador de todos estes lugares. Aparentemente não houve a leitura do território como um todo, talvez porque esta seja uma leitura de muito difícil acesso, pois que não há, atualmente, e talvez nunca tenha havido, nenhum organismo público que cuide da paisagem, que tente preservar uma identidade ligada ao lento correr de um tempo milenar. As eólicas são uma praga, uma infestante. Há cerca de 25 anos eram muito poucas as centrais, lembro-me de Sines, Serra do Poio, Lamego, Ilha Graciosa e Ponta de São Lourenço, na Madeira. Praticamente não há territórios de reserva, que se deixem intocados, que sirvam para memória futura.
Caveiras, Góis/Pampilhosa da Serra. 4 de maio de 2019 |
E assim passava mais um dia a caminhar, a subir e a descer cristas montanhosas. Eram paisagens do xisto, de alguma monotonia, de solos pobres, territórios em perda e abandono. Retrato de um país muito concreto, um “interior” que pouca gente conhecerá, ou que poucas pessoas destinarão para uma viagem. Viagens de conhecimento. Quanto melhor conhecermos o território que habitamos, maiores probabilidades teremos para encontrar soluções para o seu desenvolvimento, seja ele económico, social ou cultural. A existência de um “interior”, numa “faixa” de terra tão estreita, como é Portugal, é a expressão, temo, da ignorância coletiva, uma ilha em terra, como uma paisagem proibida que ninguém ousa penetrar.
Pedra do Lumiar, Góis. 4 de maio de 2019 |
Quando o fim da tarde chega, estava em aproximação à serra da Lousã. Ainda poderia ter algum tempo para caminhar, mas o cansaço sugere-me que pare. Procuro um local para pernoita. Estava relativamente perto de uma estrada asfaltada. Fixo arraiais num pinhal jovem. O local não era o ideal, mas tinha uma boa vista para poente. E tinha sossego. À semelhança do que acontecera na descida da serra da Estrela, também agora não consigo espaço suficiente para montar a tenda. Irei pernoitar ao relento.
Lomba da Cilha, prox., Góis. 4 de maio de 2019 |
Dia: 2019/05/04, sábado
Lugar referência: Colada de Belide
Pernoita: Serra do Penedo, prox
Quilómetros percorridos: 35,7
Quilómetros acumulados: 237,6
Concelhos atravessados: Pampilhosa da Serra; Góis
Cartas militares: 244; 254; 253
Fotografia inicial: dg899453, 05h57
Fotografia final: dg900014, 20h38
Duração trabalho fotográfico: 14h41
Fotografias: 562
Somatório fotografias: 3231
Fotografias selecionadas: 101 (17,97%)
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