quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Urbanidade

[Alberto Carneiro 21] O “urbano” é aqui, sobretudo, uma forma civilizacional, a condição humana de afastamento a um mundo de origem. A urbanidade é o agir sobre a natureza, é a consciência crítica sobre esse mundo de onde se vem e a partir do qual se quer construir a diferença, firmar o progresso, a conquista de território, de um lugar, de um tempo próprio.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Cidade

[Alberto Carneiro 20] A exposição, que visitáramos em montagem, em Guimarães, está agora próxima do seu encerramento. Há uma visita guiada. Vemos o olhar das pessoas, ouvimos o seu silêncio. É a construção da “cidade” que Alberto Carneiro nos propõe, como se a Natureza estivesse integrada nos jardins humanos, como se as formas dessa orgânica fossem geradas por um projeto coerente e transformador. Nada. São processos cíclicos, cósmicos, sentido fugaz para a vida humana. O violentamente belo, a extraordinária força que nos move em fragilidade, que interpretamos que, a um mesmo tempo, nos esmaga e nos liberta. Esta é a interrogação da arte que cria universos. A ciência interpreta, escrutina, fixa, propõe. A música, a literatura, a arte, todas as formas expressivas, libertam, divergem caminhos, inquietam. São as tentativas de adaptação a um solo vertiginoso, abissal, violento e belo, duro e fascinante, tórrido e gelado. Caminhamos num limbo temporal em que a arte apaga limites e nos liberta para a angústia do desconhecido. Ao mesmo tempo que que nos parece dar um chão, inebria-nos com a sua sedução fantasmática real.
Este é o lugar criado por Alberto Carneiro. É o trazer a natureza para dentro da cidade, uma natureza que nos interroga, que nos desafia, que nos mostra as teias da sua construção num tempo de milhões de anos, a sucessão de vidas sobre vidas, a densidade e a opacidade das matérias, o seu carácter orgânico integrado num espaço-tempo sem limites. Mas a Natureza que é projetada por Alberto Carneiro, já não é aquela que conhecemos, aquela de onde evoluímos como espécie biológica, é um mundo por si inventado, é um convite a voltarmos a olhar para essa mesma natureza-mãe, como se num olhar demorado, envolvente, estivesse a chave do entendimento das nossas vidas, de uma condição humana divergente, fugaz, de futuro absolutamente imprevisível.

Centro Internacional de Arte José de Guimarães, Guimarães. 2016

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Regresso

[Alberto Carneiro 19] Deste mundo vasto, aberto, pleno de sinais, regressamos ao jardim. Há aqui duas naturezas em relação: os fazeres de Alberto Carneiro e a natureza que os envolve e com os quais a sua obra comunica. Há também a cidade habitada de que parece nos conseguimos ausentar momentaneamente. Como se, neste jardim, todos os gestos humanos e a evolução da natureza, da vida na Terra, da geologia, de tudo, tudo pertencesse a um mesmo desígnio, sentido. Mas os fazeres humanos estão integrados nesta marcha evolutiva, são os elementos que um universo em expansão pôs em relação, que gerou formas inexistentes no passado, num processo imparável. É a “seta do tempo”, um mundo cada vez mais complexo e interminável nos labirintos que sucessivamente cria. Há em Alberto Carneiro desenhos que ligam territórios infinitos.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Sobre o olhar

[Alberto Carneiro 18] Uma extraordinária viagem em que transportamos em nós o desejo de regresso a um mundo onde já não é possível voltarmos. Mas há olhares que nos permitem imaginar essa descoberta primordial.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2016

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Estranhezas

[Alberto Carneiro 17] Imagens estranhas que encontramos num arquivo fotográfico de todos as viagens feitas no passado. De onde vêem as estranhas fotografias que atravessam todo o arquivo? Trinta anos de trabalho. Representações que procuram o significado das formas, como se nos prendessem à única possibilidade de sobrevivência, aqui, neste solo onde repousamos horizontais nas noites estrelas das caminhadas ininterruptas.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Modelação

[Alberto Carneiro 16] No jogo humano de modelação da face dos solos, criar o seu próprio território, a Natureza interpela-nos com desconcerto, como que a deixar à nossa leitura que a Terra requer um compromisso para o seu habitar. Caminhamos sobre essa terra, respiramos eras antigas, um pouco do futuro, o ensaio evolutivo da significação inexistente. O tempo passa. Corpos celestes movem-se no frio escuro do espaço sideral. Cosmos.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Filamentos

[Alberto Carneiro 15] Quando viajamos sob um céu descoberto ou nos caminhos da floresta, longe das cidades, há elementos que prendem a nossa atenção, sobretudo vegetais entrelaçados, troncos, ramos, teias finas de filamentos, musgos, como se neles nos sugerissem uma ausência de nós próprios, de uma condição racional, para o regresso ao passado muito remoto em que teremos dado os primeiros passos. Os lugares pouco povoados são espaços do tempo longo, onde os elementos estão sujeitos à ordem natural, onde os humanos não deixam a sua ânsia de transformação e fuga.



quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Terra

[Alberto Carneiro 14] Viajamos para campo aberto, para longe. Lugares distantes e distintos. Observamos a natureza intacta, as suas formas vegetais. Não podemos ficar indiferentes a estes elementos, como se houvesse a necessidade de a eles justapormos uma linguagem simbólica que permita a sua descodificação. Constantemente relembramos o labor de Alberto Carneiro. A invenção da palavra parecia há muito estar inscrita nesta orgânica biológica que nos antecedeu e nos acompanha.



segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Jardim

[Alberto Carneiro 13] Saímos para o jardim exterior. Há humidade. Voltamos a encontrar peças dispersas, mas agora essas esculturas estão integradas com a própria natureza, aqui contida, limitada por muros. Há elementos trazidos de outras paisagens, pedras. Há o verde que cresce, que se entrecruza com o próprio imaginário que percorremos. Uma imensa geografia.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

sábado, 30 de novembro de 2019

Modos de permanência

[Alberto Carneiro 12] Tudo existe de forma aleatória, ensaiam-se modos de permanência e este pode ser o sentido da existência, permanecer, movimentarmo-nos, levar longe no tempo os genes que transportamos, reserva de memória para a continuidade da vida.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Natureza como linguagem

[Alberto Carneiro 11] No trabalho de Alberto Carneiro há uma transição da Natureza para a linguagem ou uma hipótese possível para o desenvolvimento embrionário de uma descodificação das formas da natureza, uma tradução de conexões, invenção de símbolos. Há uma interpretação do mundo que é transposta, que é deslocalizada, matéria nova, transformada numa outra coisa. Há uma decifração dos elementos do ambiente exterior para a invenção de uma mensagem partilhada. Peças de arte que são a proposta de um diálogo, da invenção da escrita, da palavra polissémica.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Ataduras

[Alberto Carneiro 10] Observamos as pequenas intervenções, como as ataduras de algumas peças, que prendem os ramos, canas ou outros elementos vegetais. Este é mais um gesto que agarra o seu significado a uma leitura do mundo rural, das práticas longamente aplicadas em meios arcaicos, de práticas agrícolas antigas.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Arte

[Alberto Carneiro 09] Descemos para um outro espaço onde estão algumas obras de Alberto Carneiro. Como que caminhamos entre as ruínas deixadas por uma tempestade, mas as marcas que encontramos são as das goivas e dos formões, das serras. Não se trata de uma paisagem assolada por uma catástrofe, por ventos ciclónicos, abalos violentos, derrocadas, cheias, matérias transportadas aleatoriamente para locais distantes. Aqui há o desenho que parte do envolvimento físico com as peças de madeira, pressentem-se gestos de uma luta dura, de um trabalho sem descanso, de uma força imparável, as mãos e o corpo sem repouso, o limiar da exaustão. As noites habitadas pelo desejo célere da madrugada seguinte. Deste tempo longo, que apenas intuímos, ficam as marcas delicadas, os veios subtis, as texturas surpreendentes. Uma nova natureza, como se este fosse o natural passo seguinte de formas que procuram a sobrevivência no diálogo com o tempo que passa sobre um mundo mutante, efémero, veloz e agreste.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Livros

[Alberto Carneiro 08] Nas lombadas dos livros identificamos como que toda a procura humana das formas, da arte, dos sons, da palavra, como se na espessura daquelas paredes, na sequência ordenada das páginas de volumes desencontrados estivesse o sentido perplexo do espaço e do tempo contemporâneos. Estava ali plasmada toda a história conhecida da escultura, da pintura, da arquitetura, de todos os fazeres subtis que nos conduzem ao presente. Ali estava também a construção lenta de um fazer, as margens de uma vida funcional, a busca da arte que interpela o mundo desconhecido, a escultura de cosmogonias. Mas os livros são também futuro, são as leituras vindouras mesmo que nunca se venham a realizar, são uma reserva de tempo e de pensamento para viver mais tarde, são demora, presença, presente constante e imutável.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

sábado, 23 de novembro de 2019

Biblioteca

[Alberto Carneiro 07] A biblioteca de Alberto Carneiro é uma cidade suspensa sobre a natureza, sobre o seu espaço de trabalho, sobre o imenso jardim que criou, que é a sua obra, onde quotidianamente trabalha. Há aqui busca de uma síntese, de tudo aquilo que fez, de um caminho que se ramifica em veredas densas, de um passado que ganha complexidade e espessura com o decurso do tempo. Nada é neutro nesta “cidade”, tudo tem uma posição selecionada, posta deliberadamente, pensada. Não haverá uma geometria totalitária, mas uma determinação de ordem topológica, acionada por uma memória sem fim, sem limites, por vezes apenas latente, mas que a qualquer momento desperta na construção de histórias, sempre irrepetíveis.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Escada

[Alberto Carneiro 06] Subimos uma escada. Observamos, num primeiro relance, objetos de diferentes proveniências, objetos como que criaturas com a marca do tempo, tal como encontráramos nas ferramentas. Tudo está envolvido em livros, que revestem as paredes, arrumados em estantes.

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Formões, goivas, grosas, serras

[Alberto Carneiro 05] Nas ferramentas de Alberto Carneiro antevemos um mundo de formas da matéria, da madeira trabalhada. Há uma questão de perplexidade que parece evidente quando observamos estes instrumentos: há aqui uma força extrema, ou a violência que encontramos na natureza, em todas as espécies que lutam pela vida: estas são as “armas” de um combate, mas esse combate é também um diálogo com os elementos que se trabalham, a que se molda um desenho, um projeto, uma orgânica nova que liga mundos distantes. São utensílios de força com polimento da mão, com marcas do uso prolongado. O paradoxo da dureza expressa naqueles cabos de madeira e naquelas lâminas é o facto de nelas terem origem peças de uma grande delicadeza. São os fazeres da mão ou a dimensão humana sobre as paisagens.

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado, Trofa. 2015

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Guimarães

[Alberto Carneiro 04] Faltavam poucos dias para a inauguração e a exposição encontrava-se em montagem, nos ajustes finais. Os Inquéritos [à Fotografia e ao Território] — Paisagem e Povoamento viria a inaugurar no dia 17 de outubro de 2015, no Centro Internacional de Artes José de Guimarães, com curadoria de Nuno Faria. A exposição percorria uma série de trabalhos de fundo sobre o espaço português, desde 1881, data de uma expedição científica à serra da Estrela, até à atualidade. Uma parte muito significativa do trabalho de Alberto Carneiro que tem como elemento chave a fotografia, está aqui em exibição. Percebemos o sentido destas fotografias no âmbito de uma exposição alargada sobre o território. Nelas está um olhar que hoje mantém toda a sua pertinência. Naquelas imagens está registada uma aproximação à Natureza, singular e única. Fotografias compostas com desenhos estão fixadas nas paredes brancas. Há cores vivas, dominantes; as fotografias são a preto e branco. São trabalhos de descodificação da Natureza, de interpretação da paisagem, leitura, fascínio por tudo quanto era ali visível, da procura de relação, números, desenhos, geometrias, construção, significação. Depois há palavras que despoletam pensamentos, que acrescentam complexidade àquele mundo que se adensa em labirintos.

Centro Internacional de Arte José de Guimarães, Guimarães. 2015

Centro Internacional de Arte José de Guimarães, Guimarães. 2015

Centro Internacional de Arte José de Guimarães, Guimarães. 2015

Centro Internacional de Arte José de Guimarães, Guimarães. 2015

domingo, 17 de novembro de 2019

Trinta anos depois

[Alberto Carneiro 03] Partimos de uma situação concreta, vivida. Poucos dos seus alunos esquecerão as aulas de Alberto Carneiro e o seu olhar fixo em desafio ao nosso próprio olhar: jogo de procura do que está por trás dessa face, da vida e dos mundos que transportamos e refletimos. 1987. Estávamos a aprender desenho na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Trinta anos passaram.

Espaço de Alberto Carneiro, São Mamede do Coronado, Trofa. 2016

sábado, 16 de novembro de 2019

Abertura

[Alberto Carneiro 02] Este trabalho é sobre o projeto, sobre o desenho. É sobre a terra, sobre a arte, sobre as “cidades”. É sobre a natureza, sobre a transparência da opacidade do que não vemos, sobre a densidade de um mundo fascinante.

Centro Internacional de Arte José de Guimarães. Guimarães. 2015

Espaço de Alberto Carneiro. São Mamede do Coronado. Trofa. 2016

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Natureza Dentro, Alberto Carneiro, 2017

[Alberto Carneiro 01] Desde os tempos da faculdade, quando, no segundo ano do curso de Arquitetura da Universidade do Porto, fui aluno de Alberto Carneiro, que procurava uma forma de abordar o seu trabalho pela fotografia. Sentia uma enorme gratidão por ter podido contactar com ele e pela amizade que se seguiu até ao final da sua vida. O texto que se vai seguir, em várias publicações neste espaço, foi editado em livro por ocasião da exposição «Alberto Carneiro — Árvores e Rios», com curadoria de António Gonçalves, realizada na galeria Ala da Frente, em Vila Nova de Famalicão, entre os dias 10 de junho e 23 de setembro de 2017.
Estas palavras e fotografias são para Alberto Carneiro pelo pensamento que ergue do desenho para nos mostrar a delicadeza brutal da natureza.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Cláusula nona

O concurso Viseu Terceiro, atual Viseu Cultura, começou por ser uma louvável iniciativa da Câmara Municipal de Viseu para o apoio e financiamento de diversas atividades culturais que acontecem na cidade. A ideia foi, desde o início, fomentar a transparência na adjudicação de recursos do erário público.
No entanto esta situação tem vindo a ser alterada. O júri independente do início, rapidamente foi dispensado e substituído por uma Comissão de Avaliação nomeada e presidida  pelo Vereador do Património, Cultura e Ciência, Turismo e Marketing Territorial, Jorge Sobrado.
Este ano o regulamento do concurso apresenta uma cláusula que é significativa sobre o modo como é atualmente gerida a cultura com financiamento municipal. No ponto nono do artigo 13ª (Apresentação e admissão de candidaturas) é referido: “As candidaturas deverão propor uma atividade nas áreas de música, teatro,dança, performance, novo circo, poesia ou outra, a realizar em data a acordar no mês de julho de 2020, no âmbito da programação “Mescla”. A execução financeira da atividade será da responsabilidade da própria candidatura.”
A liberdade criativa dos concorrentes fica anulada por esta cláusula. A ideia de um concurso e de uma competitividade saudável em que as melhores propostas serão financiadas, desaparece. O que fica patente é a completa incapacidade da autarquia em assumir a programação do/da “Mescla”, uma iniciativa desenvolvida pela Câmara Municipal que não tem uma ideia minimamente coerente, qualquer princípio estruturador dos seus conteúdos, nem tão pouco um tema agregador. É, de facto, uma mescla. Também diria que, num ambiente saudavelmente democrático a organização deste género de iniciativas deveria ficar a cargo de programadores independentes e eles existem bem qualificados na cidade.
Outra questão, que raia de forma abusiva uma ética de verticalidade, é obrigar os concorrentes a financiarem esta atividade, obrigatória, através do seu próprio orçamento. No fundo a Câmara Municipal de Viseu dá com uma mão e tira com a outra. De qualquer modo não deixa de ser a organização de um evento “sem” gastar recursos do orçamento municipal.
Mas talvez aquilo que parece evidente é o cultivar nos agentes culturais da cidade uma mediocridade submissa, que esteja alinhada, em diametral oposição, com o perfil de quem a promove. Com este concurso Viseu fica mais pobre, ficará a cidade menos apta para se integrar num movimento global de cidades criativas. É também, a cada ano que passa, o cultivar uma interioridade que agoniza pela falta de visão política efetiva. Sim, ao invés de uma ideia forte desenvolvida por criadores ativos que saibam integrar a cidade no território que a envolve, o que fica exposto é uma manta de retalhos, espelho de uma gestão política que apenas se serve do marketing para exibir o mais profundo e estéril vazio.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Percorrer lugares antigos

[regressar onde 14] Percorrer de novo lugares de 1995 é a revisitação de memórias, de vivências, em torno da defesa das gravuras, da perceção, na altura ainda um pouco incipiente, do valor de todo o conjunto do vale. Este passado de ligação, o facto de ter vivido, pessoalmente, uma série de experiências naquela paisagem, condiciona de forma acentuada, um olhar sobre o vale do Côa e os seus elementos significantes. A memória grata do habitar o vale antes da criação do Parque Arqueológico, da pernoita junto dos núcleos das gravuras, hoje, por vários motivos, já não é acessível. Está como que quebrada essa continuidade existencial que na altura era o viver entre o rio, o vale e as gravuras. Contraditoriamente passou a ser possível, em liberdade, o acesso à área da obra da barragem, a que o acesso estava vedado. Mas esta viagem é a da impossibilidade de um regresso, do voltar ao passado perante o espanto do tempo que passa, de tudo o que muda. Não são apenas as paisagens que se transformam, é também o olhar descodificador de quem as lê e interpreta, integra no seu universo vivencial, numa intransmissível escala espácio-temporal. Houve laços que se quebraram: são como as fotografias que apenas nos deixam o pequeno fragmento do tempo do seu registo, mas quase nada informam sobre um antes e um depois, ou o que está para além das margens do seu recorte. [Esta é a última publicação da série Regressar Onde].

dd176-14 - São Gabriel, Vila Nova de Foz Côa. 1996

dd181-14 - Vale do rio Côa, Vila Nova de Foz Côa. 1996

na0285-11 - São Gabriel, Vila Nova de Foz Côa. 1995

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Vale gravado

[regressar onde 13] O vale gravado do Côa pode ser hoje o ponto de partida para uma grande viagem, onde como que se encontram os grande problemas e desafios do Portugal contemporâneo, e da gestão do território de uma Nação. Não longe daqui há outros vales imponentes, como sejam os do rio Sabor ou do rio Tua e, sobretudo, o entalhe vertiginoso do Douro, espinha dorsal de uma região vasta, que para montante, vai progressivamente assumindo uma dimensão ímpar. Num contexto alargado estamos aqui no centro arcaico de um movimento de apropriação da paisagem que deixou marcas em todos os períodos históricos e que ainda hoje não terminou. Atualmente, nas vilas e cidades de interior, como Vila Nova de Foz Côa, procuram-se soluções para a fixação da população, constroem-se edifícios públicos, complexos desportivos, salas de congressos, pavilhões de exposições. Luta-se, com o betão, contra a perda sistemática de pessoas que partem à procura de, sobretudo, trabalho, vitalidade económica. Enfrenta-se o adormecimento e abandono de uma paisagem vastíssima. Deixam-se terras pobres e secas, deixa-se a luta milenar pela edificação de uma cultura. Foge-se para o conforto, muitas vezes ilusório, das grandes cidades, para a integração na magna urbe onde, em fusões e contaminações de hábitos e fazeres, se define a contemporaneidade. Talvez seja o futuro precário de todos nós, de uma sociedade onde procuramos estar integrados, o gesto de construir uma casa. Ou criar um imaginário de referências, de valores, numa abstração por vezes criativa, mas quase sempre esmagadora da individualidade, ou identidade, de cada um dos seus cidadãos.

dd161-33 - São Gabriel, Vila Nova de Foz Côa. 1996

na0280-10 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Paisagem conturbada

[regressar onde 12] Há uma envolvência geográfica que, nas mais recentes décadas que vivemos, se vem tornando cada vez mais complexa. A paisagem conturbada do curso terminal do Côa é um bom exemplo de um jogo de tensões difícil de resolver. As gravuras foram o primeiro gesto de uma intervenção duradoura num lugar “natural”, um passo inaugural, um delicado desenho e o dealbar da fixação do tempo e da forma, da realidade, em superfícies rochosas. Este é quase como o primeiro registo materializado de uma espécie que se vai emancipar de todas as outras e desenvolver um universo de razão, linguagem e tecnologia, inexistente até então. Há um conjunto de gravuras que estabelecem uma relação única com o vale. Seria esta leitura que as águas da barragem iriam destruir. Esta é uma das mais notáveis e arcaicas intervenções conhecidas do homem paleolítico em toda a Terra. Não se pode comparar, diretamente, as gravuras do Côa com outras manifestações gráficas como, por exemplo, as pinturas de Altamira, Lascaux ou Chauvet, que se encontram em grutas e que talvez tenham sempre guardado segredos rituais apenas acessíveis a comunidades locais. As gravuras foram, são, uma “arte” pública a envolver todo um território, a promover a participação de um vale, de um rio, a convocar um “espírito do lugar”. Muito antes do advento das cidades, já no Neolítico, as comunidades de hominídeos viviam em movimento, ou temporariamente fixadas em pequenos acampamentos, sempre de enorme precariedade, sujeitas as numerosas variáveis, como o clima, os recursos de caça disponíveis ou a proximidade de outras comunidades, eventualmente hostis. As manifestações rupestres do Côa incrementam o nosso conhecimento sobre um período da evolução humana de que não abundam elementos com esta qualidade. Mas também estimulam hoje a nossa imaginação, dão-nos pistas para a descodificação de um passado muito remoto. Este vale é quase como uma primeira cidade, ainda sem estruturas edificadas permanentes, sem arruamentos, mas já com o desejo de marcar e habitar um território em permanência, de o integrar numa cosmicidade que dava os primeiros passos numa interpretação da vida, do mistério da morte, da consciência de um tempo que passa.

dd145-23 - Vale do rio Côa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

dd163-12 - Pedreiras do Poio, Vila Nova de Foz Côa. 1996

dg313377 - Barragem, Vila Nova de Foz Côa. 2012

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Quinto elemento

[regressar onde 11] Há um quinto elemento que nunca foi especialmente referido durante a polémica da barragem, mas que provoca na paisagem uma ferida acentuada. São as pedreiras do Poio, de onde é feita a extração de xisto, de lousa, há várias décadas. O destino inicial dessa extração foi, creio, os esteios para a vinha de todo o vale do Douro. Hoje, nas quintas em modernização ou na plantação de vinha nova, são usados esteios metálicos ou de madeira. As pedreiras estão apostadas na indústria das rochas ornamentais, de aplicação na construção civil. O processo de escavação não parece ter fim. A cicatriz causada pelo esventrar da terra tem uma dimensão cada vez maior. Há um núcleo de gravuras, o sítio da Canada do Inferno, que fica a escassas centenas de metros das pedreiras. É para montante deste sítio, e até à quinta da Barca, que se situam os principais núcleos de gravuras como sejam o do Fariseu, de vale Figueira, da Ribeira dos Piscos e o da Penascosa. Para montante destas terras de xisto temos um vale que se adensa e que se aperta já em solos de granito e onde podemos ainda observar outros núcleos de expressão desenhada, particularmente de períodos da idade dos metais. Mas as pedreiras do Poio também se apresentam como um espaço de inquietação e de mistério para quem hoje as percorre. Há zonas da pedreira que estão desativadas que se assemelham à ruína de uma cidade habitada por colossos.

dd163-05 - Pedreiras do Poio, Vila Nova de Foz Côa. 1996

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Quatro elementos

[regressar onde 10] Em caminhada, a partir de um ponto elevado, colocarmos uma questão: o que é o Vale do Côa hoje? Podemos, talvez, destacar cinco elementos que marcam a atual paisagem do curso terminal do rio. Mais de duas décadas volvidas sobre o auge da polémica da interrupção da obra da barragem, pela sua singularidade, pela sua antiguidade e significado, as gravuras continuam a ser o coração do lugar. Um segundo elemento é, sem dúvida, a cicatriz deixada nas margens do rio pela obra abandonada da barragem. Houve extensos movimentos de terras que são hoje a marca de um combate perdido. A barragem do Pocinho, no rio Douro, não poderá ser excluída de uma análise deste território, pois enche uma albufeira que chega praticamente ao lugar da Penascosa, submergindo, desde 1983, vários núcleos de gravuras. O esvaziamento pontual da barragem permitiu revelar uma realidade que não fora atendida no período da construção daquela barragem. Um outro elemento é a quinta da Ervamoira, antiga quinta de Santa Maria, que também esteve sob a ameaça de submersão pelas águas da albufeira da barragem. Hoje esta quinta é como que um jardim desenhado num solo que se oferece com pendentes suaves.

na0281-10 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

dd173-11 - Quinta da Ervamoira, Vila Nova de Foz Côa. 1996

dg315442 - Barragem, Vila Nova de Foz Côa. 2012