quarta-feira, 25 de abril de 2012

Fugaz


[A Construção da Fuga #21] Há qualquer coisa de severo, de pleno, neste passado em que muitas vezes fomos felizes sem o sabermos, apenas tomando consciência desse facto muitos anos depois, quando esses momentos, ou períodos, já não nos são acessíveis. Talvez mesmo como espécie, transportemos no interior das nossas células este passado biológico que todos os dias descobrimos no transporte para o futuro. Estes são os passos deambulantes por uma paisagem. É o que fica de sensações de uma vivência que muitas vezes não passa nas fotografias dos lugares, mas é como uma realidade latente que permanece na memória do viajante. É um elemento complementar de todos os registos fotográficos, escritos sobre uma paisagem, mas a que mais ninguém tem acesso. Há uma luta com a expressão para tentar deixar impresso, de alguma forma, esse fascínio, este labirinto que se procura simplificar. Este é o sentido e o símbolo destas palavras, a procura interminável para a qual uma vida parece ser pouco, mas que num momento fugaz, muita vezes, tudo aparece para se esvanecer com a velocidade de um relâmpago, ou de um sonho que imediatamente se apaga nos primeiros segundos do nosso despertar. É desse sonho que vêem estas palavras, vêem também do que fica por trás de todas as fotografias, desse ato compulsivo, sóbrio, de tentar captar, não uma realidade visível, uma paisagem, mas como tudo isso fascina, não apenas de um conceito de belo, mas sobretudo de uma razão descodificadora de um fascínio, e da vivência vital de um momento, que se quer fixar, materializar numa dimensão de memória, arquivar numa permanência viva, transmitir. E a vida vai-se tornando progressivamente mais complexa por juntar todas as fotografias e memórias num território de desprendimento do seu referente, por querer tornar acessíveis, em simultâneo, todos os momentos de um passado construído num tempo de que hoje apenas restam fragmentos de uma vivência que os definiu e que, na altura, lhes conferiu sentido, razão de ser. É nesta perda de vínculo que se joga o equilíbrio precário de um presente denso.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Futuro


[A Construção da Fuga #20] A chuva, o vento, o frio, o calor, o cansaço, muitas vezes extremo, o limite de uma resistência física, o som de uma coruja numa noite gelada, o coachar das rãs na madrugada de um ribeiro, o sol das manhãs e o calçar as botas para mais um início de caminhada, o subir uma montanha, a procura de uma sombra sob um sol abrasador, ou de um pequeno regato para beber água, procurar um local para a pernoita e não pensar no dia seguinte. Uma ferida que sara sob uma película suor, e uma dor qualquer que se esquece. Uma paisagem ininterrupta que se renova a cada passo. Há uma energia poderosa que nos conduz por lugares desconhecidos. Há todos os medos que deixamos num horizonte crepuscular e uma vida que se dilui numa cosmicidade que existe vaga dentro de nós quando o pensamento se desprende de um sem-número de preocupações que transportamos todos os dias e que nos turvam a limpidez do olhar. Despojaremos essa face. Aqui dá-se o afastamento da cidade, de um quotidiano edificado sobre milhares de anos de civilização, de uma imparável evolução de espécie, que nos conduz a um distanciamento célere de um mundo arcaico, mas que, simultaneamente nos deixa janelas abertas, muitas vezes quase ocultas, do que foram as viagens passadas, não raras vezes de sofrimento e dor, mas sempre com um vislumbre de futuro.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Conforto


[A Construção da Fuga #19] O estar e o ter estado são as condições essenciais desta fotografia de paisagem. O habitar fisicamente é um dado absolutamente fundamental deste trabalho. O contacto da pele com os lugares, a paisagem sentida pelo pisar o solo, é um dos elementos mais importantes da vivência de espaço, da permanência longe de alguns confortos da civilização. Aqui se toma o contacto significante com uma série de factores que condicionam a nossa relação com o espaço envolvente.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Perder


[A Construção da Fuga #17] Todos os trabalhos que desenvolvi foram feitos de forma muito consciente e deliberada, metodicamente organizados e pensados em todas as suas fases com um razoável grau de rigor. Mas esta era uma visão pontual, aplicada a cada momento, não havia a noção de construção de algo que abrangesse o conjunto destes fazeres fragmentados, que, de qualquer forma, faziam parte integrante de uma identidade, da qual não era possível a desvinculação. Mas o que agora encontro é mais, e diferente, que a soma das partes. Há o edificar sólido de um labor, como que uma pequena cidade com carácter labiríntico, que se apresenta diferente no decurso do tempo. Mas além de todos os trabalhos, desses marcos de percurso, há um rasto do que lhes fica na margem, que muitas vezes é mais do que fotografias não selecionadas. São ideias, são novos projetos que quase sempre não ganham forma, mas que acabam por contribuir, de modo mais ou menos direto, para outros trabalhos. Cada trabalho é, assim, a confluência de vários tributários num rio maior. Mas, dizia, o mais significativo das margens dos vários trabalhos é, sem duvida, a constituição de arquivo de grandes dimensões que, por si só tem um significado que excede muito uma mera reunião de imagens com interesse mais ou menos vago. Este é o grande mar onde confluem todos esses rios, os seus pequenos tributários (sendo que alguns são relativamente grandes). É este grande mar que vai contaminando de forma significante todos os fazeres que existem em pontos específicos do seu futuro. A fotografia é a reinvenção de um território humano. Já não se tratam das paisagens fotografadas, mas de um olhar seletivo e filtrado de um mundo passado recente. Este mundo é diferente daquele que foi visto, vivido e registado, pois encerra dimensões ambíguas e difíceis de definir porque se transformam com o decurso do tempo e das interpretações a que vão ser sujeitas. As fotografias não são quadros para pôr na parede, não se procura o belo-aí, são como um imenso livro, em vários volumes, existente numa biblioteca, que pode ser consultado e servir de base para para outras investigações, para pontos de partida de outras viagens, a encetar por desconhecidos. Poderá também ser um livro esquecido que vive na imanência da sua descoberta por um leitor ocasional. Pode ser o que se vai perder.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Inverso


[A Construção da Fuga #16] A procura de uma origem é aqui um caminho inverso que se perde num interminável labirinto que se adensa à medida que recuamos no tempo. Inverso porque de recuo, irreal; movimento de consciência, mais do que qualquer outra coisa. (Tudo isto poderá representar apenas um caminhar dentro da própria consciência). Mundo de luz e sombra.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Reenquadrar


[A Construção da Fuga #15] Todo este movimento é, creio, desencadeado pela ideia do "belo", pela procura de subtilezas significantes dentro das paisagens, por elementos de descontinuidade dos lugares que estimulam a nossa reflexão, que questionam a nossa própria existência. Talvez a procura de uma harmonia, de um equilíbrio quase sempre ausente das nossas vidas. É nesta precariedade que se cria o nosso próprio movimento, é nela que encontramos a base de uma energia criativa e, eventualmente, a raiz da consciência. Há aqui uma busca continua do equilíbrio, como que a definir a base de qualquer procura. O que se seguirá depois é a reflexão sobre um novo 'lugar' que tem origem no acumular dos nossos registos e materialização de memórias em fotografias. Parte-se de um reenquadramento da realidade visível, pela fotografia, para procurar aquilo que ela não mostra no imediato. A soma de todas as fotografias de um lugar vai ser mais do que a própria realidade que se pretendera retratar. E este é o jogo infindável da fotografia sistemática e documental da realidade. É uma fotografia de afastamento e de rutura. Aqui há a procura do tempo em que este processo se iniciou, numa altura em que não havia consciência desse início, nem se consegue precisar o ponto inicial desse caminhar. As fotografias dos lugares acabam por ser fotografias do tempo, tanto quanto o são do espaço. O espaço, aliás, é vertido numa bidimensionalidade. O tempo é parado e associado a essa bidimensionalidade.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dentro


[A Construção da Fuga #14] Este é um olhar contemporâneo que à terra não pede nada que não seja a justificação para a sua própria razão de ser. A terra é aqui uma viagem pela existência, dentro de uma desterritorialização. O que, agora, se pode mostrar não é algo de novo, uma nova abordagem sobre as paisagens, mas uma paisagem dentro de outras paisagens povoadas de espanto. Estes são lugares dentro de lugares, num jogo de afastamento, de fuga, de construção de uma enorme casa humana e o sentido da arquitetura enquanto espaço imaginário. É o contrário de uma arquitetura material, que edifica lugar e condiciona o pensamento, definindo espaços concretos e limitados. Estas fotografias são um adeus às próprias paisagens que representam. São a fixação de um momento e de um espaço no tempo exato do seu desaparecimento. Há aqui um afastamento da condição funcional e económica das paisagens, para passarem a ser interpretadas como uma outra realidade, mais esquiva e difícil de apreender. São as paisagens deceptivas, que escondem mais do que revelam. Este saber é aquele de que nos fala a ciência contemporânea. Poderá haver uma limitação da nossa própria compreensão para o entendimento destas múltiplas dimensões que aparecem associadas a um aprofundamento do estudo das paisagens.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Estúdio


[A Construção da Fuga #13] Metodologias e procedimentos. Aqui se trabalha o rigor, o estudo do tempo e do espaço. É aqui que se podem dominar quase todas as dimensões de um trabalho. Há um espaço e um tempo contidos e determinados. Não há a incerteza do campo aberto, do cosmos infinito que envolve os nossos passos e os nossos actos no terreno. Em estudos contidos temos uma micro-realidade apreensível e dominável, com poucas margens de erro, que, de qualquer modo, podem acontecer. As fotografias feitas em estúdio, dos procedimentos, são um ensaio de um mundo dominado. O retrato com poucas variações sobre o erro, ao contrario do que pode acontecer em trabalho de campo, onde se sucedem uma sucessão de imprevisibilidades. São diálogos fotográficos diferentes, alternativos.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Paisagens


[A Construção da Fuga #12] O que ensinam as paisagens? Esta é uma questão base de uma fase inicial do meu trabalho, quando me demorava longamente em caminhadas intermináveis. Ensinam, antes de mais, uma ilusão. Ocultam uma realidade múltipla, desviam a atenção de factos essenciais. É a sua condição de belo, e uma cultura a ela associada, que desviam a concentração de elementos verdadeiramente fundamentais que ela manifesta. Uma forma de a "capturar", fotograficamente, também contribui para o desvio de questões base que nos colocam essas mesmas paisagens. Há uma gramática do "belo-piroso" que pode destruir as possibilidades de aprofundamento das suas múltiplas possíveis interpretações. As paisagens ensinam a liberdade e podem ser a materialização dessa vivência.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Vínculo


[A Construção da Fuga #11] No enquadramento destes fazeres, num tempo contemporâneo, deparamo-nos com uma quantidade de informação que é impossível de gerir, por tão vasta e dispersa ser. É aqui que somos obrigados a tomar opções de caminho a seguir e a definir toda a envolvente dos nossos fazeres. Encetamos a construção da fuga. Mas este é um caminho que tem que ter um vínculo social, uma fonte de rendimento, viabilidade económica. Este é um ponto base de partida, e, muitas vezes, o seu maior desafio. Este aspeto tem que ser visto como algo que seduz, que é um desafio ao qual não devemos querer fugir, pois este pode ser o nosso maior legado na construção de uma sociedade da qual fazemos parte. Em ultima instância é um trilho, um caminho possível que deixamos aos nossos filhos. Pode ser esta, também, a gratidão em relação a um sistema que nos fornece todas as ferramentas de produção de saber de que precisamos para a execução do nosso labor. O meio que habitamos dá-nos as ferramentas e um lastro de saber acomulado por milhares de anos de sucessivas gerações. São as paisagens humanizadas e todas as formas de expressão que acontecem a uma escala planetária. Mas muito do que seduz esta escrita é um mundo pré-humano que ainda se encontra em muitíssimos detalhes do nosso quotidiano envolvente.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Abstração


[A Construção da Fuga #10] Como fuga esta é uma construção pensada, estudada com morosidade, na demora de todos os pormenores. Mas estes pormenores são um mundo que sucessivamente se adensa, que vai ganhando uma progressiva dispersão, desvio em relação ao ponto de partida. E é este, talvez, o maior sentido da fuga e aquilo que a prende ao próprio significado da construção de um atlas. O atlas reúne um conjunto de mapas, de itinerários, de fazeres, que definem esse caminho de fuga. Mas esta fuga é uma explosão, fragmentação de uma realidade que se vai tornando cada vez mais complexa à medida que nos afastamos de uma origem, sendo que essa referência é algo que procuramos no decurso desta viagem. Esta é uma viagem humana. É um movimento de risco. Risco como projeto sobre uma superfície lisa e branca. Risco porque o seu sentido é evidentemente questionável, corresponde a uma visão de elevada abstração.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Grau zero


[A Construção da Fuga #9] Há a procura de um grau zero de qualquer coisa, do habitar das paisagens, da construção de um discurso, de uma ideia de comunicação. Uma redução progressiva de um conceito até à sua mais elementar e simples expressão. Há também uma procura da verdade e de pacificação, de reencontro com uma, talvez, cosmogonia da infância, antes do desprendimento para a realidade de um quotidiano de sobrevivência, desabrigado, exposto. Neste sentido a fuga é o regresso a um universo primordial, onde, creio, tudo na nossa consciência e modo de ser, se forma. A fuga é uma construção improvável e precária, eventualmente impossível, porque nos vamos deparar com a morte, inevitavelmente.