quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Quatro elementos

[regressar onde 10] Em caminhada, a partir de um ponto elevado, colocarmos uma questão: o que é o Vale do Côa hoje? Podemos, talvez, destacar cinco elementos que marcam a atual paisagem do curso terminal do rio. Mais de duas décadas volvidas sobre o auge da polémica da interrupção da obra da barragem, pela sua singularidade, pela sua antiguidade e significado, as gravuras continuam a ser o coração do lugar. Um segundo elemento é, sem dúvida, a cicatriz deixada nas margens do rio pela obra abandonada da barragem. Houve extensos movimentos de terras que são hoje a marca de um combate perdido. A barragem do Pocinho, no rio Douro, não poderá ser excluída de uma análise deste território, pois enche uma albufeira que chega praticamente ao lugar da Penascosa, submergindo, desde 1983, vários núcleos de gravuras. O esvaziamento pontual da barragem permitiu revelar uma realidade que não fora atendida no período da construção daquela barragem. Um outro elemento é a quinta da Ervamoira, antiga quinta de Santa Maria, que também esteve sob a ameaça de submersão pelas águas da albufeira da barragem. Hoje esta quinta é como que um jardim desenhado num solo que se oferece com pendentes suaves.

na0281-10 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

dd173-11 - Quinta da Ervamoira, Vila Nova de Foz Côa. 1996

dg315442 - Barragem, Vila Nova de Foz Côa. 2012

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Itinerários de margem

[regressar onde 09] Houve um momento em que um último trabalhador deixou os estaleiros. Nenhum funcionário voltaria ao serviço da obra. Já nada mais haveria para remover. Hoje apenas algumas pessoas visitam, ocasionalmente, a ruína de algo que não foi construído. Silêncio. Se aproximarmos o olhar do solo da ruína, vemos a natureza a tomar parte de algo que lhe fora estranho. Em todos os locais há vestígios de um processo de renaturalização que vai envolvendo os elementos. As britas deixadas no chão, que deveriam integrar o grande paredão da barragem, estão envoltas por musgo que reverdece com a chuva. As estruturas de betão construídas para o apoio da obra, mantêm a sua imponência rasa, de elementos abandonados prematuramente. Trilhos, carreiros de pé posto, muitas vezes quase impercetíveis, percorrem este labirinto acidentado. São os passos deixados por alguém que por qualquer motivo, atravessa esta paisagem contraditória, sem aparente motivo que o justifique. Breves marcas de passagem sem destino. Itinerários de margem.

dg222369 - Barragem, Vila Nova de Foz Côa. 2011

dg314243 - Barragem, Vila Nova de Foz Côa. 2012

dg315774 - Barragem, Vila Nova de Foz Côa. 2012

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Um oceano inexistente

[regressar onde 08] Em 2011 regresso ao curso terminal do Côa. No fundo do vale tudo parece permanecer numa dimensão atemporal. Talvez a maior diferença em relação ao ano de 1995 seja um acentuado crescimento das árvores que agora assumem uma presença mais significativa criando uma cortina visual. O silêncio é apenas quebrado pelas aves, pelo vento nas folhas, pelos insetos, pelo marulhar do rio que agora, verão, está com o caudal muito baixo, depois de um inverno e primavera de pouca precipitação. À noite, como que nas vagas de um oceano inexistente, o coaxar das rãs faz-se ouvir com intensidade descontinuada. Este era o reencontro com a força telúrica de um vale, com o carácter de uma paisagem que motivou, há dezenas de milhares de anos, a fixação de comunidades humanas que aqui deixaram uma mensagem para o futuro. Foi a perenidade dos traços deixados nas rochas. Estava agora, de novo, no coração desse sítio, na proximidade dos mais significativos conjuntos de gravuras do vale. O voltar a estes lugares revela também alterações na paisagem. Há mudanças que escapam na leitura dos espaços que percorremos. Há um dinamismo que esconde uma vertigem temporal a que muitas vezes não somos sensíveis. Há algo de imparável na Natureza que vai além de algumas morfologias, da erosão, do coberto vegetal.

dd170-22 - Ribeira de Piscos, Vila Nova de Foz Côa. 1996

dd192-14 - Ribeira de Piscos, Vila Nova de Foz Côa. 1996

na0284-03 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

sábado, 10 de agosto de 2019

Não havia uma cidade

[regressar onde 07] Não havia ainda a arte, não eram, estes, quadros que se pusessem na parede. Eram imagens fixas, agarradas à terra, à rocha, à permanência. Era o ter por perto o alimento de que dependia a própria espécie, as comunidades. Estávamos na contínua luta, no mesmo, ainda, tabuleiro de uma Natureza complexa, dura, fria, imprevisível. Não havia uma cidade, mas estes eram os primeiros traços de uma nova casa que levou muitos milhares de anos a construir. Temos dentro de nós, ainda hoje, o código genético desta longa caminhada, de todos os nossos antepassados.

dd161-30 - São Gabriel, Vila Nova de Foz Côa. 1996

dd189-17 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1996

na0283-05 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

O registo de uma origem

[regressar onde 06] Nestas gravuras a céu aberto, temos o registo de uma origem, são como que fotografias, imagens retinianas que ficaram fixas para um tempo longo. É o significado profundo da fixação do visível, que é conhecimento, que é descolamento da realidade e, simultaneamente, a sua duplicação. É a criação de um mundo próprio, a recusa de uma Natureza severa e, em grande medida, hostil. Mas estas gravuras são também o desejo de travar o tempo. São os primeiros passos de uma humanidade que já conhece, conscientemente, a sua condição. Uma espécie que adquire uma poderosa ferramenta de sobrevivência, que está num campo de batalha, que se espraia por um muito extenso território, a descoberta de todo um inteiro mundo.

dc161-03 - Canada do Inferno, Vila Nova de Foz Côa. 1996

na0280-03 - Penascosa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

na0304-09 - Vale do rio Côa, Vila Nova de Foz Côa. 1995

dd186-26 - Quinta da Barca, Vila Nova de Foz Côa. 1996

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Museu do Côa

[regressar onde 05] No ano 2010 foi aberto ao público o Museu do Côa, representando como que o desfecho de toda uma polémica que, mesmo hoje, ainda desperta paixões, pois quem olha as gravuras de forma apressada e sem se aperceber de toda a complexidade do seu contexto, eventualmente pensará que semelhante manifestação artística não merecia o fecho da obra da barragem. O museu foi edificado no alto do promontório sobranceiro aos vales do Côa e do Douro. De uma singular e qualificada obra de arquitetura podemos observar a grandiosidade da paisagem que deu origem a uma das mais notáveis manifestações culturais conhecidas do homem do Paleolítico. O Vale do Côa é hoje considerado o mais importante sítio ao ar-livre, com gravuras rupestres, no mundo.

dg287221 - Museu do Côa, Vila Nova de Foz Côa. 2012

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Vila Nova de Foz Côa

[regressar onde 04] Vila Nova de Foz Côa era uma vila que vivia num certo marasmo, como acontece em muitas povoações do interior de Portugal, em que se vem assistindo a uma perda continuada de população desde a segunda metade do século XX. Mas um facto novo imprimia um dinamismo invulgar ao lugar. Em 1994 era iniciada a construção de uma barragem de grandes dimensões, junto à foz do rio Côa. Alguns meses mais tarde é divulgado um achado arqueológico que viria a alterar significativamente a história do lugar e inscrever aquela geografia no mapa da atualidade. Um conjunto de gravuras rupestres é divulgado. Rapidamente se percebe que se está perante um achado verdadeiramente invulgar e muito significativo. As gravuras são do período Paleolítico, representam, generalizadamente, animais, e são um das mais antigos vestígios da presença de comunidades humanas em território português. O conjunto das gravuras ficaria submerso se a barragem fosse edificada. É iniciado um aceso debate entre os defensores da barragem e aqueles que pugnam pela preservação do património arqueológico e cultural do vale. Já se havia realizado um avultado investimento nas infra-estruturas para a construção. Quando foi interrompida a obra, já o grande rasgo que iria receber o paredão, estava aberto, pronto para as primeiras betonagens. Mas isso não viria a acontecer. A obra interrompida, parou. Durante meses ainda permaneceram no local todas as estruturas prontas para a retoma dos trabalhos. Mas estes não vieram a acontecer. Em agosto de 1996 é criado o Parque Arqueológico do Vale Côa. No ano seguinte a arte do Côa é classificada como monumento nacional, nesse mesmo ano a vila é elevada a cidade. O conjunto das gravuras viria mais tarde, em 1998, a ser classificado como património da humanidade, pela UNESCO. O vale foi investigado por arqueólogos durante vários anos, num trabalho que prossegue na atualidade. Não eram apenas alguns painéis gravados: no conjunto revelaram-se centenas de gravuras e de sítios arqueológicos desde o paleolítico às idades do metais, numa continuidade de inscrição nas rochas que continuou até meados do século XX.

dd163-30 - Vila Nova de Foz Côa. 1996

dd163-36 - Vila Nova de Foz Côa. 1996

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Barca d’Alva, Penedo Durão

[regressar onde 03] Sem o saber, estava a entrar num território que seria marcante para um percurso de leitura e de entendimento do espaço português. Depois dessa primeira viagem, várias vezes haveria de voltar ao vale do Côa. No ano seguinte, poucos meses depois, regressava àquela região. No dia 24 de agosto de 1994, estava novamente a atravessar a foz do rio em direção da Barca d’Alva e ao Penedo Durão. A paisagem estava agora muito diferente. Era o verão, que varre aqueles lugares com temperaturas muito elevadas e uma acentuada secura.

na0303-01 - São Gabriel, Vila Nova de Foz Côa. 1995