quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (8/8)

Casaco de Orlando Ribeiro. Vale de Lobos. 1997


O que eu encontrei na casa de Vale de Lobos, aquilo que procurei pela fotografia, foi o sentido de uma vida austera que era revelada por cada objecto, por cada peça de vestuário, por cada elemento aparentemente insignificante que povoava aquele espaço. Era uma vida quase despojada de matéria, centrada no prazer do conhecimento da diversidade dos lugares, do processo histórico de povoamento do espaço e das formas como a fixação de comunidades humanas se integrava e se adaptava a paisagens e a condicionantes climatéricas previamente existentes. Não havia excesso, luxúria ou qualquer género de ostentação: talvez isso o afastasse da proximidade que queria ter com um mundo essencial que encontrava nas suas pesquisas de campo, fosse numa cidade de interior, numa pequena aldeia da serra, nas planícies do sul, em tantos outros lugares, ou no "bosque de sombras perfumadas", expressão usada por Orlando Ribeiro para descrever a serra da Arrábida, um último reduto da floresta mediterrânea, que nos remete para a vivência significante das paisagens, da relação humana que com elas estabelecemos, mas também para o sentido da permanência, ou o habitar de um universo singular e fascinante.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (7/8)

Serra das Meadas. Lamego. 1996


Esta ânsia de conquista, quantas vezes absurda, é acompanhada por um galopante consumo de energia, que se vai procurar em todos os lugares da Terra. País pobre em combustíveis fósseis, Portugal procura nos rios uma fonte de energia, através da construção de barragens, para alimentar de electricidade os grande aglomerados urbanos. São também construídas centrais termoeléctricas, permanecendo a recusa sensata do nuclear. As barragens representam já uma significante intervenção no território, particularmente as de maior dimensão. Mas este processo desmedido e continuado de procura de energias limpas, continua. O poder político orgulha-se, actualmente, das centrais eólicas, que são construídas um pouco por todo o lado. A sua fraca produtividade em relação às necessidades de consumo humano, leva a que o seu número seja cada vez mais elevado. Numerosos locais, nomeadamente serras de média altitude, como que reservas de paisagens íntegras, são devassadas por estradões que rasgam acessos onde, no passado, apenas se podia aceder através de caminhadas demoradas. Esta procura da invisível energia simboliza a conquista desregrada de todo o solo disponível de uma Nação. Assiste-se a um generalizado empobrecimento do território ,a favor de uma uniformização das paisagens. A terra que pisamos é, seguramente, o último reduto e o mais sólido alicerce da vida neste planeta. Cada vez mais nos afastamos do significado profundo e do sentido de um habitar humano. O desenvolvimento imparável das cidades, e o enraizamento cada vez mais fundo da era digital, promovem, também, o afastamento do mundo físico concreto e da espantosa diversidade de lugares e formas de vida do planeta. Talvez fosse este um dos aspectos que mais desalentava Orlando Ribeiro que, em alguns escritos no fim da sua vida, denota uma certa tristeza com o rumo que esta nova face da humanidade está a encetar. Assistia à perda de um mundo milenar e ao desaparecimento de uma sabedoria solidamente edificada por gerações e gerações de trabalho árduo, continuado e de um nunca baixar de braços perante todas as adversidades. (continua)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (6/8)

Fontelo. Viseu. 2011


Neste progressivo afastamento da terra, e do nosso próprio planeta Terra, a relação com a Natureza torna-se cada vez mais pobre. As populações refugiam-se nas cidades, que vão crescer continuamente, espalhando-se pelo território como uma mancha de óleo, aproximando-se entre si neste processo, através de eixos viários de tráfego intenso e rápido. O advento e generalização das tecnologias digitais, vai trazer mais um motivo para que um mundo que num passado recente era pouco acessível se torne, ilusoriamente, próximo, através de diversos suportes informáticos. Deixa de haver uma vivência efectiva de espaço sensorial rico e diversificado, para a sua experienciação ser intermediada por diversos aparelhos de ecrã luminoso. Substituímos a textura das árvores, das pedras, as diferentes águas, o calor do fogo numa noite fria de Inverno, ou o escutar de uma trovoada no isolamento de uma montanha - um som poderoso e forte que nos desafia em medo, mas que nos liga a uma cosmicidade inquietante - por imagens em movimento visualizadas em ecrãs luminosos. (continua)

domingo, 13 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (5/8)

Serra da Estrela. 1997



No livro que fiz sobre Orlando Ribeiro, anteriormente referido, propus uma viagem breve à serra da Estrela. Depois de ver numerosas referências àquele maciço montanhoso, escritas, fotografadas e desenhadas, e das conversas com Suzanne Daveau, sabia ser aquela uma região especialmente admirada por Orlando Ribeiro. Nas primeiras visitas científicas à Serra seguia o trilho de pastores e carvoeiros; não havia outros acessos que não aqueles feitos a pé ou de burro. Mais tarde seria construída a estrada de ligação à Torre, que terá sido interpretada por Orlando Ribeiro como um gesto arrogante e desnecessário por parte das entidades que tomaram aquela iniciativa. Era uma perversa conquista da civilização: em torno do vértice geodésico mais elevado do território continental português, foi construída uma rotunda. Uma rotunda no ponto mais elevado de Portugal. Uma rotunda que não alimentava o escoamento de tráfego urbano, mas parecia simbolizar o caminhar ininterrupto num vazio circular, andar sobre si próprio num tempo imóvel, o Portugal de então. Hoje, esse traçado fundamentalmente urbano, poderia ser lido como uma metáfora da expansão de um povoamento desregrado, que se libertava de condicionantes milenares e anunciava um novo período histórico, dominado por meios de locomoção muito mais velozes. (continua)

sábado, 12 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (4/8)

Casa de Orlando Ribeiro, em Vale de Lobos. 1997


A obra de Orlando Ribeiro surge como um ponto de luz num oceano de escuridão. Há momentos em que um mundo, aparentemente desconexo, ganha uma coerência maior na reunião clarividente de diversos saberes dispersos e fragmentados. O olhar de Orlando Ribeiro encerrou a tranquilidade de uma paisagem estável, antes de um tremor de terra. A sua escrita ficou como uma fotografia de um mundo que se transformará num tempo breve. No seu olhar sobre Portugal, há a pureza e a genuinidade de uma ideia simples. Depois da sua leitura fica-nos o contentamento de um mundo que apreendemos, fica a sedução de uma linguagem de forte poder comunicativo, uma prosa que se solta do espartilho de um discurso científico. Tal como os seus desenhos, onde a ausência do detalhe fotográfico nos transporta para um tempo secular, também a sua interpretação sobre Portugal ficará como a síntese de dois mundos: o Mediterrâneo e o Atlântico. O pensamento de Orlando Ribeiro acrescenta sentido, clarifica e representa uma sólida pedra no edifício do conhecimento de Portugal. (continua)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (3/8)

Botas de campo de Orlando Ribeiro, fotografadas em sua casa, em Vale de Lobos. 1997


Esta visita, este contacto com Orlando Ribeiro e com a sua obra, não mais me abandonaria e iria funcionar como uma memória de referência em muitos dos trabalhos que desenvolveria num futuro em que não mais deixei de percorrer Portugal. Quase vinte e cinco anos passaram sobre o meu primeiro contacto com a obra de Orlando Ribeiro. Regressei a Portugal - O Mediterrâneo e o Atlântico, e é com renovado espanto que releio o texto, agora que o território português sofre alterações cada vez mais profundas e mais aceleradas. Orlando Ribeiro mostra-nos um mundo à beira da sua própria implusão. Era o fim de uma realidade rural e arcaizante e o advento de um tempo diferente. Era o fim de uma cultura milenar de relação com a terra. A escrita, mas também as fotografias, mostravam-nos um mundo de relação próxima com a terra, um mundo em que, enredado numa evidente pobreza e austeridade, parecia, a seu modo, perfeito, integrado numa harmonia cósmica, pleno de sentido pela forma como se agarrava aos ciclos dos dias e das noites, da sucessão dos anos. Os seus textos descrevem-nos uma realidade humanizada e singular, mas também o sentimento de uma mudança eminente. Um dos maiores fascínios da sua obra é o rigor desse relato do Portugal de meados do século XX. Há um saber que cheira a terra. É notório, como fonte fundamental de conhecimento, o contacto com as populações locais, com a expressividade de uma terminologia própria da vida quotidiana das pessoas, dos trabalhadores. O seu saber rigoroso e erudito não provinha apenas da leitura e do contacto com os grandes mestres da geografia europeia da época, vinha muito, também, desse demorado trabalho de campo e de proximidade com as pessoas. Não foi apenas o mundo rural que entrou em declínio, mas a própria ciência geográfica vai também assumir novas direcções. (continua)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (2/8)

Casa de Orlando Ribeiro em Vale de Lobos. 1997
Não tenho presente a data precisa, mas suponho ter sido no final do ano de 1995. Tinha proposto a José Mattoso o desenvolvimento uma obra, em vários volumes, baseada na imagem fotográfica de registo do território e do tempo longo em Portugal. Aproximava-se a data da inauguração da Expo' 98, dedicada ao oceanos, e a minha ideia era realizar um conjunto de exposições e de edições sobre o território português, numa altura, em que, mais uma vez na história nacional, o País se voltava para fora. Numa fase mais avançada da nossa pesquisa e do meu trabalho de recolha fotográfica, José Mattoso sugeriu a participação de Suzanne Daveau, mulher do Orlando Ribeiro. Deslocámo-nos a sua casa em Vale de Lobos, para apresentar o projecto. Foi nesse dia que conheci Orlando Ribeiro. Já se encontrava com uma saúde débil, mas mantinha o olhar vivo de uma curiosidade que dos seus livros emanava. Mas esta visita à casa de família de Orlando Ribeiro foi marcante também por outro aspecto. Na altura, o meu trabalho de campo já estava muito avançado, já tinha percorrido a quase totalidade do Portugal Peninsular, em canseiras difíceis de exprimir e, de repente, parecia que todo esse mundo se encontrava sintetizado naquela casa. Era Portugal inteiro que ali estava em lombadas de livros, mapas nas paredes e outros objectos relacionados com as memórias e o ofício de geógrafo, como a sua câmara fotográfica, os cadernos de campo ou uma prancheta forrada a papel milimétrico usada para desenhar. Foi a partir deste universo pessoal que, mais tarde, propus a Suzanne Daveau o desenvolvimento de um trabalho relacionado com a casa de Vale de Lobos, que viria a ser editado pouco tempo depois, pouco depois da conclusão de Portugal - O Sabor da Terra. Nessas fotografias procurei fixar a presença vestigial de Orlando Ribeiro. (continua)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (1/8)


Capa da 5ª edição, de 1987, sobre desenho e apontamentos em caderno de campo de Orlando Ribeiro



Em resposta a um convite que me foi dirigido por Suzanne Daveau, para escrever um texto para o catálogo da exposição que se encontra atualmente na Biblioteca Nacional de Portugal, escrevi Bosque de Sombras Perfumadas. São palavras da minha aproximação à obra de Orlando Ribeiro, que começou com a leitura de Portugal - O Mediterrâneo e o Atlântico, uma das obras literárias que mais marcou o meu percurso pessoal e profissional. Irei apresentar aqui a totalidade do texto em oito fragmentos, sempre acompanhados de imagens.
Na segunda metade da década de 1980 começava a interessar-me por Portugal, pelo seu espaço físico, pela paisagem, pelas formas de povoamento e pela arquitectura, motivo pelo qual me encontrava na cidade do Porto a estudar. Sonhava já com viagens pelas regiões mais inóspitas do nosso território. Na altura, os guias de Portugal não se exibiam com abundância nos escaparates das livrarias, como hoje acontece. Tinha comigo dois volumes do Guia de Portugal, de Raúl Proença e Santana Dionísio, que trouxera de casa de meus pais, mas agora o que eu procurava era uma geografia ou um estudo sobre o território nacional. Vivia na altura num quarto alugado, numa água-furtada de um prédio antigo, na Avenida Rodrigues de Freitas, bem perto da Escola de Belas-Artes, como então era conhecida, onde funcionavam os dois primeiros anos do curso de Arquitectura. Um dia, haveria de escrever a data da aquisição - 15 de Dezembro de 1987 - saí de casa para ir ver o que podia encontrar na livraria Leitura. Passei pelo Jardim de São Lázaro, atravessei a Praça dos Poveiros, desci a Rua Passos Manuel; depois dos Aliados subi até chegar, finalmente, à Rua de Ceuta. Na livraria procurei a temática geográfica, que ficava no piso superior, num espaço que era, então, exíguo e denso de livros. Uma lombada cor-de-laranja chamou-me a atenção: Portugal - o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro. Não conhecia a obra e ouvira falar muito vagamente do autor. Chegado ao meu quarto, que não teria mais de seis metros quadrados, onde cabia pouco mais que uma cama e uma pequena secretária, onde um rebordo de alumínio me impossibilitava de desenhar, deitei-me e comecei a ler. Tenho ideia que era um fim-de-tarde. Mergulhava numa leitura e iria marcar os meus anos seguintes de uma forma indelével - e que ainda hoje me acompanha - não apenas nas minhas viagens, mas também nos períodos em que trabalho sobre as centenas de milhar de fotografias que entretanto recolhi, desde meados da década de oitenta, do século passado, até ao presente. Todo o meu trabalho documental em fotografia de Portugal viria a ser marcado por aquela leitura fascinante e por outros livros de Orlando Ribeiro, que procurei mais tarde e que lia com o mesmo entusiasmo. (continua)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Aparições: A fotografia de Gérard Castello-Lopes 1956-2007


Aparições: A fotografia de Gérard Castllo-Lopes 1956-2007


Gérard Castello-Lopes começou o seu percurso fotográfico submerso, inebriado com o mundo de silêncio do fundo do mar e com a imponderabilidade. Agora, no ano da sua morte, somos convidados a voar sobre o seu universo visual, como se nós próprios adquiríssemos a ausência de peso que muitas vezes o seu trabalho nos sugere. As fotografias feitas a partir de pontos elevados, com uma perspetiva de 'olho de pássaro', são marcantes no seu trabalho, mas o seu olhar de nível, mostra-nos, com surpresa, o deambular de um observador curioso que sempre se deixou surpreender por um inesgotável e renovado sentido do tempo e da geometria.
Um fotógrafo faz, quase sempre, um número muito mais elevado de fotografias do que aquelas que virá a expor ou editar, em diversos suportes. Nesta exposição, ao ser apresentado um conjunto significativo de imagens inéditas, mergulhamos no modo de ver e de trabalhar do fotógrafo, das suas opções, sobre aquilo que em determinados momentos foi excluído. Esta exposição toca essa singularidade da captura e do arquivo da imagem fotográfica. No decurso do tempo, cada vez que nos debruçamos sobre um leque de opções na selecção de imagens, fazemos, invariavelmente, diferentes escolhas. As fotografias são as mesmas, nós é que nos transformamos em processo contínuo. Se a materialidade de uma fotografia representa a fixação de um hiato temporal breve, a sua leitura, ou interpretação, não deixa de estar vinculada à diversidade de olhares contempladores que a tocam num dado momento histórico.
Outra particularidade do mundo da fotografia é a impressão, a partir de uma mesma matriz, de imagens em diversos formatos. Também agora podemos ver, lado a lado, imagens de variadas dimensões, que, por isso, assumem diversas significações. Não é o único na exposição, mas um exemplo notável é a fotografia da 'pedra', feita no Guincho em 1987, em que nos são apresentadas cinco diferentes impressões desta imagem enigmática. Um enorme rochedo parece flutuar sobre as ondas. Esta fotografia é uma síntese do trabalho de Gérard Castello-Lopes, do mundo que procurou e que aqui nos deixou plasmado numa única fotografia. Um enorme penedo como que se eleva do mundo subaquático, onde ele próprio fizera as primeiras fotografias. Uma reflexão sobre a imponderabilidade, sobre a ilusão do olhar que a fotografia tão bem explicita, talvez mesmo uma metáfora sobre o sentido de Portugal, a sua existência como Estado-Nação - a relação com o mar de que, ao mesmo tempo, nos queremos aproximar e fugir.
Aparições: A fotografia de Gérard Castllo-Lopes 1956-2007
Curadoria: Jorge Calado
BES, Arte & Finança, Praça Marquês de Pombal, nº 3 Lisboa

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

ilustrar (curso de fotografia)


As ilustrações destes textos, da abordagem dos conceitos em Fotografia, serão feitas com imagens da minha autoria, muitas vezes sem uma relação directa com o texto, mas que de alguma forma procurarão operar um complemento de sentido em relação à escrita. A palavra, ao abordar conceitos difíceis de definir, esquiva-se a uma ilustração objectiva. Esta é a oportunidade de trabalhar a margem dos conceitos expostos, de levar a fotografia para um território de subjectividade que afronta a ideia da sua expressão concreta. É uma forma de abrir o diálogo a diferentes interpretações e possibilidades de sentido, e uma maneira de desvincular a facilidade da leitura, de proximidade, entre texto e imagem.
Céu sobre a praia da Luz. Lagos. Faro. Agosto de 2011

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Preâmbulo (a curso de fotografia)


Em cursos lectivos regulares, em workshops sobre vários aspectos da fotografia, em palestras e conferências de diversos temas, algumas centradas sobre o meu próprio trabalho, na edição e no levantamento fotográfico do espaço português, fui sistematizando conceitos no âmbito do universo da fotografia, de que aqui irei dar conta. Este é um trabalho que não tem fim, por ser inacabado pelo seu/meu próprio desejo e por não ter um destino. De cada vez que volto ao tema, para cada convite que me é dirigido para falar sobre fotografia, revejo a forma e a base de apresentar estas reflexões, que altero constantemente com o decurso da minha própria experiência profissional. Não se trata aqui apenas de fotografia, mas, principalmente, da continuada procura de soluções criativas, documentais e de comunicação, para a representação de uma realidade humana que observo, da pele 'luminosa' de coisas e objectos, de seres comunicantes que habitam e se movem dentro dessa pele, que é feita da mais diversa natureza.

Margens do rio Ponsul. Idanha-a-Velha. Idanha-a-Nova. Castelo Branco. 2005

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Começar


Quase toda a informação que nos chega pelos meios de comunicação social, pela publicidade, com que somos constantemente bombardeados, nos empurra para um consumo desenfreado do não precisamos. Este mesmo princípio é assumido pelos decisores políticos, que, como agora vemos, levam os Estados à ruína. Por se pensar que obras materiais são desenvolvimento, eleitores votam nos seus próprios coveiros. Não. Não tenho uma solução para esta atitude massificada. Gosto de procurar um olhar distanciado, de me ausentar ocasionalmente por territórios pouco povoados, sonhar a construção de um mundo baseada numa racionalidade e emoção descontaminadas. Aprender a precisar de pouco. Encontrar a dignidade e a sabedoria humanas, num texto, num filme, numa obra de arquitectura, numa canção, numa fotografia. Com menos viver melhor. Não seguir por religiões ou ideologias políticas, mas pela edificação de um caminho próprio sem temer a solidão, sem o arrogar de tentar atrair alguém para um itinerário de risco. Que por criatividade se entenda o fazer de um percurso singular, partilhado.

domingo, 11 de setembro de 2011

Voar sobre a cidade


O dia 11 de Setembro de 2001 haveria de marcar, indelevelmente, a forma como olhamos para um avião a sobrevoar uma cidade. Um acidente causado por um atentado terrorista, alterou e condiciona a nossa percepção sobre um fragmento da realidade. O conjunto dos acontecimentos, as imagens a ele associadas, tornam-se um ícone da contemporaneidade e um momento que perdurará por muitas gerações. Tragédia que fica inscrita na história humana.
Biblioteca Nacional de Portugal. Lisboa. 2 de Março de 2009

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A onda



Portugal tem uma das mais baixas taxas de natalidade do mundo. Se agora assistirmos a uma diminuição da esperança de vida, muito devida a cortes orçamentais cegos, por parte do Governo, então estaremos perante um recuo civilizacional. Já não é a economia que entra em colapso, é a destruição de um país e da sua dignidade enquanto Nação. É a falência de uma sociedade por inteiro e o afundar de um navio em que nenhum dos sobreviventes será português.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão (IX)


Sexta-feira, 5 de Agosto
Crepúsculo diário
Mata do Fontelo. Viseu. 2011

Várias vezes termino o meu dia na mata do Fontelo, em Viseu, onde vou com o meu filho mais novo. Se o meu trabalho vive num limbo de solidão, o olhar vivo e desafiador dos meus filhos impede, definitivamente, a possibilidade de me perder. Questiono-me sobre o que sou para eles, o que poderei vir a ser. Regularmente regresso ao universo de meu pai. Na minha atividade profissional não há apenas fotografias, mapas, tarefas técnicas. Ocasionalmente, como agora acontece, regresso à obra poética de meu pai e trabalho no espólio por ele deixado há mais de trinta anos. É um número vasto de documentos, que vai desde poemas autógrafos, datiloscritos, provas revistas, mas também peças de vestuário, ou um fato de mergulho, e ainda um número elevado de bilhetes de ingresso em espetáculos, cinemas, jardins, títulos de transporte para diferentes destinos. É sobre este rasto documental que fixo o olhar e construo o meu próprio ser, que me interrogo sobre o passar do tempo. Sobre um turbilhão aparentemente desconexo de ideias, reflexões e vivências, tento definir um fio condutor e um universo de sentido, sobre o qual elaboro projectos de expressão. São dias contínuos de permanente construção, de aproximação e fuga a conceitos esquivos, que surgem como uma névoa que, num tempo breve, oculta o acessório e expõe o essencial. Este é o registo dos meus passos que se sucedem na amenização de um confronto desideologizado, sem Deus, de fascínio pelo puro caminhar, numa diversão de pensamento e de viagens imaginárias, a par de um desejo de comunicação, de partilha de tão grandes singularidades que encontro nos lugares, nos objectos que posso fotografar ou descrever, que a luz descobre e a escuridão revela.
(Este é o último texto deste diário imaginário em torno do Horizonte Portugal. Estas palavras foram publicadas no Jornal de Letras nº1066, de 10 a 23 de Agosto de 2011)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão (VIII)


Sexta-feira, 5 de Agosto

As fotografias que procuro são o rosto desse caminhar, a descodificação humana de uma paisagem em que, muitas vezes, é difícil objectivar o porquê de um registo fotográfico. Gostava de me ir aproximando de uma fotografia cada vez mais despojada, que não seduzisse pelas 'artes da composição' ou pela excentricidade da luz, mas pela olhar contínuo e não fragmentário de uma realidade que nos dá sentido, que nos mergulha na palavra e no pensamento. Como num trabalho que luta contra a entropia, quero que as fotografias transmitam uma ideia de rigor, na escolha de um ângulo de captura da imagem, mas também no despojamento de artifícios visuais. Procuro aproximar-me de um 'frio' documentalismo, aquele que nos poderá dar a máxima informação sobre os lugares e a mínima sobre mim próprio.

domingo, 4 de setembro de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão (VII)


Quinta-feira, 4 de Agosto de 2011
Noite em trabalho de campo, para o projecto Território em Espera. 2005

A morosidade e monotonia de algumas tarefas é o ângulo mais agudo deste e de outros trabalhos que desenvolvo e com os quais estabeleço uma luta contínua para não desistir. São tarefas por mim criadas sempre com um objectivo de otimização. São metodologias desenvolvidas não num 'orgulhosamente só', mas, na maior parte dos casos, num 'inevitavelmente só', num jogo que é um ensaio de trabalho, mas também de vida, de autodeterminação com as implicações e o risco de uma liberdade ousada. A 'crise' que vivemos é, porventura, aquela em que quase sempre vivi. Aqui sei não estar sozinho. Nas indústrias culturais e criativas, em Portugal, à margem de discursos políticos de conveniência, habitamos um tempo arcaico em que, constantemente, temos de inventar o que fazer, para que a energia dispensada no trabalho, se traduza numa remuneração justa que permita a sobrevivência quotidiana. Um processo lento e demorado, de futuro permanentemente incerto. Construção contínua, este é um estranho desígnio de vida em que encontro algumas semelhanças com aquele que terá sido o caminhar humano numa altura em que se dá a ocupação de toda a superfície planetária pela espécie Homo Sapiens, há cerca de dez, doze mil anos. O despoletar de uma inteligência humana, associada a um quadro de desenvolvimento complexo, ainda difícil de compreender, terá motivado a expansão de uma espécie como antes não acontecera. Talvez a procura de novas paisagens, novos lugares para habitar, tenha sido um dos motivos para este movimento singular que, mais tarde, irá levar o Homem à criação do seu próprio território e à construção das cidades infinitas.

sábado, 3 de setembro de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão (VI)


Quarta-feira, 3 de Agosto de 2011

Mas as tarefas são muitas vezes árduas e morosas. A escolha de uma selecção base de três mil e duzentos lugares, número a que cheguei ao percorrer todo o meu arquivo fotográfico, leva uns meses longos. A redução deste número e o trabalho de uma hierarquização sumária das unidades de património, bem como a forma como estas podem ser expostas na Internet, são outros fazeres absolutamente necessários. A própria implantação dos lugares em cartografia e a determinação da coordenadas geográficas UTM (Universal Transverse Mercator), obriga a horas intermináveis de trabalho. São meses que muitas vezes representam uma viagem pelos mapas, que sugerem novos lugares e novas abordagens a todo o projecto. Habito este dinamismo permanente.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão (V)


Terça-feira, 2 de Agosto de 2011
Fim da tarde
Pendilhe (prox.). Vila Nova de Paiva. Viseu. 20 de Maio de 2004

Talvez como antologiar poemas de um poeta maior, a selecção de lugares de um território vasto é uma tarefa fascinante mas inquietante, não tanto pelo que contém, mas pelo que tem de se excluir. Há uma escolha básica que reúne os principais monumentos, espaços urbanos das maiores urbes e os parques e reservas naturais. Mas a realidade é muitas vezes feita do detalhe que pode passar despercebido a um olhar menos atento. Juntar numa mesma abordagem diferentes tipologias de património, sem que aparentemente tenham algo em comum, pode revelar quadros insuspeitos que estimulam o conhecimento e o desenvolvimento de linhas de intervenção de natureza diversa, que antes não seriam imaginadas. O detalhe de uma paisagem ou a rua de uma cidade, podem revelar a singularidade de um gesto inovador, algo de profundo da vida humana, dos sonhos e ambições de alguém. No olhar e nas construções humanas está plasmada uma luta intemporal de procura de um mundo melhor, que reproduz aspectos da própria lógica da vida e dos princípios evolutivos das espécies biológicas. Horizonte Portugal quer trabalhar na ideia de pôr todo um país em relação e que o conhecimento do espaço e dos lugares extrapole a dimensão local e regional e se estenda a todo o território português, para o estímulo de um desenvolvimento social e cultural dos cidadãos e comunidades.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão (IV)


Terça-feira, 2 de Agosto de 2011
Manhã
Calvão. Chaves. Vila Real. 30 de Julho de 2001

Seria fastidioso aqui enumerar as tarefas que levam à elaboração de um projecto desta natureza e ao posterior desenvolvimento do trabalho. Finda a primeira fase de Horizonte Portugal, trabalho na segunda de três fases, em que a última será uma tentativa de colocar na página 'todos' os lugares de Portugal, organizados numa base de dados. Todos os espaços de que alguém se lembre de pesquisar uma fotografia que os represente. A segunda fase, em que actualmente laboro, que me toma estes dias quentes de Verão, é talvez o maior desafio desta iniciativa: uma selecção de lugares, que neste momento se encontra aberta, mas que deverá contribuir para uma visão renovada do que é a complexidade das formas de povoamento em Portugal e o modo como se articulam com as paisagens que lhes deram origem.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão


Segunda-feira, 1 de Agosto de 2011
meio-dia
Serra da Estrela, Janeiro 1991
Horizonte Portugal é uma reflexão continuada e sistemática sobre Portugal, que se iniciou em 1985 com viagens que, na altura, ainda não tinha um propósito definido, mas que mais tarde iriam dar origem aos primeiros trabalhos publicados como Portugal - O Sabor da Terra, a que se seguiram outros livros e exposições de caráter regional ou local. A obra mais exaustiva, que levou cerca de cinco anos de trabalho de campo, foi aquela que deu origem a Portugal Património, cujo trabalho fotográfico desenvolvido constitui a espinha dorsal do projecto agora iniciado.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Horizonte Portugal - Diário imaginário em dias de Verão

Segunda-feira, 1 de Agosto de 2011
madrugada

Gosto de iniciar o dia de trabalho antes das oito da manhã. Por vezes é na curta viagem de bicicleta, entre a casa e o estúdio, que defino o que vou fazer nas horas seguintes, outras vezes, na noite anterior, esboço uma lista de tarefas. Não tenho uma agenda. O trabalho que ocupa a maior parte do meu tempo é, agora, Horizonte Portugal, uma página na Internet onde pretendo colocar um conjunto significativo do meu arquivo fotográfico sobre Portugal, que neste momento ascenderá a mais de oitocentas mil fotografias. A primeira fase do projecto foi terminada recentemente e já pode ser visitada em www.horizonteportugal.org. Apresenta um conjunto de intenções e de objectivos para um futuro breve. É um trabalho que deverá ser desenvolvido em três momentos, mas nunca terá um fim, pois pretende-se que seja permanentemente atualizado com novas fotografias, com novas formas de navegação, não apenas pelo próprio sítio, mas principalmente pelo território português, por uma paisagem que está em constante transformação. Aqui reside o maior desafio deste projecto: reinventar uma geografia de Portugal em moldes completamente novos, baseados na imagem fotográfica, em cartografia e, eventualmente, em pequenos textos.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

esfera

A forma de uma esfera. Todas as pedras pareciam estar próximas dessa forma. Depois de um olhar mais atento via que a presença de um mínimo que fosse de simetria já era algo de raro. Estava na praia do Castelejo, no sul da costa Vicentina. Uma praia que habitualmente está coberta de areia no horizonte de rebentação das ondas. Naquele ano não havia areia, mas apenas os calhaus rolados que aquela habitualmente esconde. Não me era possível fazer uma quantificação, mas deparava-me com milhares de pedras, de calhaus arredondados pela força do mar, de diferentes dimensões. Decidi procurar uma pedra cuja forma se aproximasse a uma esfera. Não recordo o tempo de demora da tarefa. Não terá sido pouco. Esta procura começava a ter qualquer coisa de obsessivo, era aí que começava um curioso jogo de aproximação e fuga, de autodomínio, de controlo de todas as procuras, síntese de um caminhar humano. Encontrei um pedra-ovo de uma simetria quase perfeita, uma pedra de matéria uniforme, quase preta, quase sem veios. Aproximava-se um pouco da forma esférica com que começara a minha procura. Trouxe a pedra comigo e juntei-a a outras, poucas, que me transportam a lugares distantes. 
Um dia o meu filho mais novo, de três anos, tendo atingido uma estatura que lhe permitia ver as pedras, arrastou uma cadeira para chegar ao local onde se encontravam. Pegou na pedra-ovo, na não-esfera, e tornou-a sua.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

chuva

Por vezes gostava de ter maior capacidade para trabalhar em condições muito adversas. A própria tecnologia fotográfica não se adequa, de uma forma linear, à água ou a níveis elevados de humidade, de uma forma geral. Há que avançar por metodologias singulares. Uma meteorologia severa revela diferentes condições dos lugares, relacionados com o habitar humano. A chuva é como uma realidade arcaica, analógica, uma condição da fuga para espaços abrigados. Talvez um dos motivos que nos levaram, como espécie, a erguer as cidades. A chuva leva-nos a um desconforto ontológico e é este universo que gostaria de registar.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Gérard

Acompanhava o trabalho de Gérard Castello-Lopes há vários anos. Lembro-me do impacto que teve sobre mim ver a sua exposição na Galeria Ether - Vale tudo menos tirar olhos, no final da década de 1980, no ressurgimento que fazia na fotografia, depois de 17 anos de ausência. Era uma única fotografia no piso superior da galeria, exposta na parede do fundo, que ocupava quase completamente. Era um enorme rochedo que parecia flutuar nas águas do oceano.
Um dia recebi uma chamada da editora Assírio & Alvim, solicitando-me uma fotografia para incluir num livro de ensaios de Gérard Castello-Lopes, cuja edição estava a ser preparada. Fiquei com um secreto contentamento, por saber que um fotógrafo que admirava há tantos anos, apreciava o meu trabalho. A fotografia, que tinha sido pedida pelo próprio Gérard, era uma do penedo maior do Santuário Rupestre de Panoias, perto de Vila Real, no Norte de Portugal. Havia alguma proximidade entre esta fotografia e aquela que eu observara, anos antes, na Galeria Ether.
Não muito mais tarde, no dia da inauguração da exposição antológica 'Oui/Non', sobre a obra do Gérard, realizada no Centro Cultural de Belém e comissariada por Luísa Costa Dias, dirigi-me a ele e apresentei-me. Desde esse momento não mais iria perder o seu contacto. Recebi-o em minha casa e estive por diversas vezes em sua casa, nas faldas atlânticas da Serra de Sintra, com vista para a praia do Guincho. Um dia, em passeio pedestre juntamente com mais alguns amigos, fomos visitar o 'célebre' rochedo que parecia levitar sobre o mar. Embora a saúde do Gérard não fosse na altura a melhor, não deixou de apresentar a sua postura de um homem determinado e de passo acutilante.
Do seu trabalho em fotografia guardo a imagem de alguém que não desistiu nunca de um olhar franco e verdadeiro de, como ele próprio dizia, 'quem olha para o mundo pela primeira vez'. O seu trabalho tinha uma singularidade que se manteve ao longo de toda a sua vida: era movido pela procura desse olhar da infância. Actualmente trabalhamos quase sempre movidos pela ideia de um projecto, ou uma encomenda. Partimos para o mundo visível com a câmara fotográfica, com um determinado fim e um objectivo premeditado o que, certamente, condiciona o resultado da nossa observação e registo. No Gérard permaneceu sempre um arcaísmo que nos revela o princípio de qualquer coisa da génese substancial da imagem fotográfica significante, da sua ontologia.


segunda-feira, 4 de abril de 2011

desenho

Terminada uma actualização da minha página, caminho por itinerários cada vez mais digitais, creio, no entanto, não serem completamente virtuais. Na construção desta realidade própria e singular, faço, pontualmente, um desenho sobre papel, no meu caderno de apontamentos. Regresso a um passado que me é, apenas aparentemente remoto.
Estou no meu 'mundo analógico', como a escrita sobre papel, como o desenho, como as fotografias impressas sobre o negativo por uma luz que não se repetirá. Estou com os livros em papel, com os meus projectos que, talvez, antes de outras coisas, procurem a substância oculta da matéria e o que de humano eu observo num mundo imponderável, descontínuo e fragmentado.