sexta-feira, 28 de junho de 2019

A Cidade Jardim

[Limite-Viseu 02] Viseu quer ser uma cidade jardim ao mesmo tempo que o poder municipal que a administra parece não entender o que isso poderá significar.
Viseu vive nesta contradição de querer ser cidade ao mesmo tempo que parece desejar esconder, porque não consegue apagar, uma das suas principais marcas identitárias, que é justamente a proximidade ao rural, às paisagens que nos transportam a mundos arcaicos. Nega-se a inscrição de uma urbe no forte carácter telúrico desta extensa região que vai do Douro ao Mondego e do Caramulo à Estrela.
Na atualidade é cada vez mais valorizada a proximidade à Natureza. As cidades querem trazer a Natureza para dentro de si. Em Viseu parece acontecer o contrário. O estado em que se encontra a Mata da Fontelo ou o Parque da Aguieira, são explícitos exemplos das atitudes do poder autárquico face a esta problemática. Noutras realidades são estes territórios que começam a ser valorizados, justamente porque nos ligam a uma Natureza da qual dependemos muito mais do que até há pouco ousávamos imaginar.
O que se assiste em Viseu é a incansável plantação de rotundas com flores efémeras que são permanentemente substituídas pelos jardineiros da autarquia. Estas rotundas floridas são o símbolo de jardins insustentáveis e obsoletos, ou mesmo "falsos", como o cenário para um filme. Que não se deixe fossilizar esta cidade, que não seja apenas um parque temático que organiza eventos, como se tratasse de uma quinta onde as pessoas vão casar para nunca mais voltarem.
Entretanto a Mata do Fontelo, um notável espaço da cidade, permanece semi-abandonado à espera de uma qualquer intervenção que não sabemos ao certo de que natureza será mas devemos estar atentos para evitar a destruição do seu carácter. Numa notícia recente, o presidente da Câmara Municipal, Almeida Henriques, falava da possibilidade da requalificação do Fontelo poder demorar cinco anos. Cinco anos é uma parte muito significativa da infância de uma criança.
Parece que o bem montado marketing desta cidade se esquece que alguma coisa terá que estar por trás de uma ideia de comunicação. Terá que haver substância, matéria, algo para mostrar, algo que faça parte desta cidade, como os enormes penedos sobre os quais se ergue a Sé.

Viseu. 2019

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Viseu - Terreiro do Paço

[Limite-Viseu 01] No dia 1 de março passado fiz uma conferência no Núcleo Regional da Ordem dos Engenheiros, a convite desta instituição e também da Ordem dos Arquitetos. No âmbito dessa iniciativa, que teve como título “Viseu, quais os limites de uma cidade?”, percorri, em fevereiro do corrente ano, em recolha fotográfica, algumas das mais periféricas aldeias do município. Foram espaços onde já havia estado em 2016, num levantamento fotográfico sistemático deste concelho. Ficara dessa altura o desejo de escrever pequenos textos sobre palavras e atos políticos na relação que a autarquia de Viseu estabelece com o território. 
Quando se percorre demoradamente o Portugal “interior” há uma realidade que é incontornável: um país abandonado por si próprio, desamparado, em acentuado processo de desertificação humana. Se compararmos esta realidade nacional com o concelho de Viseu, poderemos encontrar analogias que são inquietantes. 
Quando observamos as freguesias de Viseu e alguns dos seus mais recônditos lugares, o que notamos é também o abandono da terra. Quando ouço o presidente da Câmara Municipal de Viseu, Almeida Henriques, a reclamar de Lisboa a coesão territorial, não posso deixar de me questionar se terá legitimidade moral para o fazer. Quando me desloco pelo concelho, a sensação com que fico é que povoações como Vila Chã do Monte, Quintãs, Forniçô ou Loureiro de Silgueiros, estão tão longe da cidade quanto Alcoutim, Vimioso, ou Melgaço estão distantes de Lisboa. E uma pergunta não posso deixar de me colocar: a Câmara Municipal de Viseu administra um concelho com 507,10 km² de área ou apenas uma cidade? E desta questão poderá deduzir-se uma outra bastante mais inquietante: não terão algumas administrações autárquicas uma responsabilidade grande no estado de abandono do “interior” de Portugal? 
Uma das apostas mais evidentes desta gestão autárquica tem sido a divulgação da “marca” Viseu, tem sido a inscrição de Viseu no mapa de Portugal através de uma forte aposta no marketing e a promoção de um conjunto de eventos culturais. A Câmara Municipal criou mesmo o singular pelouro do Património, Cultura e Ciência, Turismo e Marketing Territorial, que é gerido por Jorge Sobrado. A ideia do marketing territorial não pode deixar de chamar a atenção sobre o próprio território de Viseu. Voltamos a pegar na primeira pergunta, sobre a cidade e o território do concelho. O que temo que se passe em Viseu é que a cidade absorva uma grande quantidade de recursos e deixe o resto do concelho a cuidados de sobrevivência. Não conheço nenhuma manifestação cultural, com alguma visibilidade e significado, que seja promovida, por exemplo, em Povolide, Côta, Boaldeia ou Farminhão. Atualmente é sobretudo através da cultura que se cultiva nas populações locais um sentimento de pertença e de identidade na relação que se estabelece com a terra. 
O centralismo, legitimamente criticado por muitos autarcas em relação ao Terreiro do Paço, é, afinal, um modelo com raízes profundas a que não escapam os municípios e mesmo as freguesias. Estamos perante um centralismo fortemente enquistado, dominante em todos os níveis da gestão do território. Mas não poderá deixar de ser feita uma outra observação que me parece ser relativamente evidente: existe um desconhecimento generalizado do espaço administrado, desde o governo da nação até às freguesias. Ao desconhecimento, para completarmos este quadro degenerativo, juntamos uma confrangedora falta de cultura geográfica, paisagística, arquitetónica e mesmo patrimonial. Como resultado temos um país profundamente desigual.

Povoação, Viseu. 2019

terça-feira, 25 de junho de 2019

Quinze dias

[Caminhar oblíquo 18] 28 de abril, Penedo Durão - 12 de maio, Cabo da Roca. Quinze dias tinham passado. A procura de um país, do entendimento das paisagens e de como estas se relacionam com o tempo lento do caminhar, acaba por se tornar numa dura provação física, num inusitado diálogo entre corpo e consciência, quase como o abandono de uma condição racional construída por uma espécie biológica ao longo de milénios. Seria o regresso a uma "animalidade" em que perdia a linguagem simbólica, os nomes de tudo quanto me rodeava. Transformava-me em alguém que lê a terra como uma sucessão de dias e noites no ininterrupto caminhar, na procura de água, de alimento, de um ponto de equilíbrio, de uma pacificação, do encontro com uma terra “prometida”. Lugar onde se pacifica a permanente luta contra uma meteorologia instável e dura. Mas nada é permanente e um dia haverá uma definitiva partida, um fim. Agora, estava no ponto imaginário, construído talvez sobre uma ficção, em que essa referência de finitude deixara de existir como sentido. Avançava sobre uma imensa liberdade. E seria esta a essência deste movimento: a liberdade e, viria a sabê-lo pouco depois, a sua impossibilidade. O que procurava era a insondável raiz de uma dolorosa contradição, da incoerência, das peças de puzzle que não se encaixam, de um tempo que se vai construindo a si próprio sem ordem nem regras, um tabuleiro de uma inapelável complexidade. A clareza de um momento breve, como uma nuvem de pó cintilante no sol rasante do fim de tarde, que imediatamente se esvanece. O que talvez não fizesse verdadeiramente sentido era tentar descodificar racionalmente a vida, essa arquitetura. Apenas no alinhamento quase indecifrável de números e símbolos dispostos em fórmulas matemáticas, ou na arte e na poesia, encontraríamos fragmentos de contacto com mundos díspares. Um corpo liberta-se da linguagem. [Esta é o última publicação da série Caminhar oblíquo].

Serra da Estrela. 1 de maio de 2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

12 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 17] Levanto-me. Sinto as botas um pouco apertadas, mas não tinha dores. Se nos primeiros dias só ao fim de cerca de uma hora de caminhada é que parava para comer qualquer coisa, agora acordava com fome e com a sensação de fraqueza, de precisar de ingerir algo. O dia estava tranquilo. A noite amena prometia temperaturas elevadas para a jornada, mas a proximidade do oceano atenuaria esse efeito. Estava já muito longe do vale do Douro de onde partira. De meio milhar já percorridos, tinha pouco mais de 25 quilómetros pela frente. 
Carvalhal, prox., Mafra. 12 de maio de 2019

Ainda o Sol não se erguera no horizonte quando atravessei o Carvalhal. Daí subi para Odrinhas. A serra de Sintra era já claramente visível, bem recortada à minha frente. Prossigo em direção a Codeceira e, depois, Aldeia Galega. Antes de chegar a Janas opto por um atalho à esquerda. Essa estrada de terra levar-me-á até Mucifal. Colares viria a seguir. Descanso mais um pouco. Estou em paisagens que me são muito familiares. Prossigo.
Carvalhal, Mafra. 12 de maio de 2019
O meu objetivo era, de Almoçageme, fazer um corta-mato até Ulgueira. “Quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos”, foi a resposta de um senhor à minha pergunta sobre se haveria por ali um caminho. Não corro riscos.
Já depois de Almoçageme, ao andar pela estrada em direção ao Pé da Serra, uma mulher jovem caminha à minha frente com um vestido leve e claro. Está calor. O movimento dos carros perturba constantemente este caminhar. Não há bermas. Por breves momentos penso nessa ausência de quase tudo em que vivera imerso durante duas semanas. É pouco tempo, mas foi uma viagem muito mais longa do que essa duração. Num vislumbre recordava gestos e palavras, o toque, o tato da mão, o corpo quente, os cabelos lavados, a humidade da respiração, um perfume familiar, o movimento delicado de um corpo belo, a voz demorada em conversa lenta, as palavras que não são nossas. A cor funda de um olhar íntimo. Sensualidade. Estava a regressar; como a água quente que corre pelo corpo. 

Odrinhas, prox., Sintra. 12 de maio de 2019

Godigana, prox., Sintra. 12 de maio de 2019

Em Ulgueira sim, apanho um atalho para evitar a passagem pela Azoia. Dobro um vale e subo uma pequena ladeira. Volto à esquerda, tenho à minha frente o Farol do Cabo da Roca.
Alfaquiques, prox., Sintra. 12 de maio de 2019

Quando termino a caminhada sinto estar perto de um limite, que não era apenas o fim da viagem. A um cansaço muito acentuado sobrepus sempre a vontade de continuar. Tenho os pés ligeiramente inchados, mas deixara praticamente de ter as dores que me acompanhavam desde o segundo dia de caminhada, quando ainda tinha quinhentos quilómetros para percorrer num horizonte de montanhas. A sensação era a de que a qualquer momento poderia haver uma falência do corpo que me obrigaria a parar. Caminhava sobre uma insustentabilidade, num esgotamento físico progressivo, ao mesmo tempo que um desejo imperturbável de continuar parecia alimentar de energia um corpo-máquina que afastava um limite de possibilidades para um ponto mais distante. Era como um jogo sem regras que se vai definindo com o evoluir de uma narrativa indeterminada.
Colares, Sintra. 12 de maio de 2019

Havia algum contentamento por ter conseguido cumprir o objetivo de me debruçar sobre o oceano, fim e destino de tantas outras viagens. Estava preparado para relatar a história de um falhanço, de uma viagem imaginária que não conseguira terminar. Havia desde o início o desejo de construir um objeto de comunicação. Para esta ideia era mais ou menos indiferente terminar a viagem ou ficar pelo caminho. A viagem era uma linha, um conceito, um território de ninguém, que divide, grosso modo, um país em dois. E sobre um país que se procura poderia sempre dizer qualquer coisa, como uma viagem projetada num mapa, em que muitos dos locais por onde passaria já tinham sido por mim visitados ao longo dos últimos trinta anos.
Janas, prox., Sintra. 12 de maio de 2019

A fazer lembrar um pouco a passagem por Barca de Alva, no primeiro dia de caminhada, estava agora no meio de turistas, completamente indiferentes a tudo o mais. Estava aqui, como eles, no extremo continental mais ocidental da Europa. Era uma imersão na realidade, como se nada tivesse acontecido nas duas semanas anteriores. Era a segunda vez que me deparava com turistas, mas agora em muito maior número, talvez por ser domingo.
Pé da Serra, prox., Sintra. 12 de maio de 2019

Esta era também a imagem de um mundo global, pessoas juntas, pacificamente, sem qualquer contacto entre si, cada uma dentro de um pequeno grupo, a usufruírem do lugar, da situação, daquela singularidade geográfica. Era como se, durante duas semanas, tivesse percorrido a terra antiga, milenar, geológica, quase inacessível. Agora estava dentro de um tempo social, profundamente contemporâneo, alegre, aparentemente ausente, ali na "irrealidade" de um momento descolado do quotidiano da vida de cada pessoa.
Cabo da Roca, Sintra. 12 de maio de 2019

Este tempo "fora" não foi muito prolongado mas tocou em infinitos ocultos. Abriu portas de estranheza, de paisagens distantes, percorridas, porque não, há milhares de anos. Não tivera um tempo efetivo para me desligar do quotidiano, mas agora parecia solto desta realidade dos dias corridos. Navegava na margem de uma corrente a que não queria voltar, mas cujo campo magnético impedia de me afastar demasiado. Talvez apenas desejasse procurar novas palavras, que ainda não foram inventadas, como aquelas que pudessem falar do amor, do indizível, da barreira que tentamos quebrar em momentos que todas as palavras parecem poucas ou não se adequam.
Cabo da Roca, Sintra. 12 de maio de 2019

Agora ia finalmente poder tomar um duche, comer qualquer coisa quente, sentar-me e ler algumas notícias, pois nada soube do que se passara no mundo nestas duas últimas semanas. Ia poder dormir numa cama, lençóis brancos, uma almofada. Mas quando me defronto com estas possibilidades elas parecem ter perdido o carácter de algo que se deseja. Pontualmente ocuparam o meu pensamento durante a viagem, mas progressivamente foram deixando de ter um significado concreto. 
Cabo da Roca, Sintra. 12 de maio de 2019

Estava de regresso aos dias corridos, a uma certa rotina. Para trás ficava uma experiência de vida sobre a qual se poderão agora sobrepor desenhos e palavras. É uma outra viagem, como que a invenção de uma condição urbana instável, sempre em procura do seu significado. A caminhada faz parte deste jogo, tentativa e erro, modo de usar uma existência racional. Querer habitar esse limbo entre a ciência, a arte e a poesia. Recusar os formatos que nos integrem numa determinada normalidade. Assumir o temor, remeter o medo para a beira do indizível. Dialogar com a solidão. Que o risco seja uma linha traçada sobre um mapa, que essa linha seja o fragmento de uma geometria maior. Que a abstração progressiva nos conduza à viagem interminável. De novo olhamos o céu estrelado nas noites das mais altas montanhas e, quando entrarmos no sono, a manhã seguinte será um oceano de possibilidades.

Dia: 2019/05/12
Lugar referência: Cabo da Roca
Pernoita: (Queluz)
Quilómetros percorridos: 27,8
Quilómetros acumulados: 530,1
Concelhos atravessados: Mafra; Sintra
Cartas militares: 402; 416; 415
Fotografia inicial: dg903410, 06h20
Fotografia final: dg903841, 15h46
Duração trabalho fotográfico: 9h26
Fotografias: 432
Somatório fotografias: 7058
Fotografias selecionadas: 88 (20,37%)

sexta-feira, 21 de junho de 2019

11 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 16] A noite junto da vinha fora tranquila. Depois de atravessar a aldeia de Matacães, concelho de Torres Vedras, passo o rio Sisandro. Caminho ao lado da linha ferroviária. Pouco depois passo à estação de Runa; do lado oposto da estrada localiza-se o Lar dos Veteranos Militares. Este foi um espaço que acolheu militares vindos da guerra nos antigos territórios coloniais, muitos deles mutilados. Já noutras ocasiões passara por aqui e sempre me inquietava com o imaginar o sofrimento daqueles antigos combatentes. Fotografo a estação, que parece semi abandonada. No cais está um jovem com uma guitarra à espera do comboio. Prossigo para sul, na direção de Ribaldeira e depois Furadouro, onde reabasteço de água. Já tenho à minha frente a Serra do Socorro, coroada por um santuário mariano. Terei que atravessar a A8 por um túnel para esta última subida íngreme.
Matacães, prox., Torres Vedras. 11 de maio de 2019

Runa, Torres Vedras. 11 de maio de 2019

Runa, Torres Vedras. 11 de maio de 2019

A Senhora do Socorro, foi o último miradouro de altitude. Não teria a necessidade de ali subir. Era um local onde já estivera no passado. Mas, apesar do cansaço, não hesitei em avançar sobre o declive acentuado da encosta norte. Era por aqui que estava desenhado o itinerário. Seria a despedida das montanhas. A vista a todo o redor impressionava.
Gradil, Mafra. 11 de maio de 2019

Chego a Gradil, onde um casamento acabara de acontecer. Com o habitual espanto, reparo, sobretudo, nos vestidos femininos em que me parece sempre que os cortes, as cores e os tecidos, raramente se enquadram muito bem com quem os veste. Imagem de uma certa insensatez a que não escapam os homens com fatos menos vistosos, mas igualmente pouco benéficos, gozando apenas da vantagem de alguma descrição. Ao deixar a aldeia, depois de ser buzinado, em jeito de cumprimento, pelo condutor de uma viatura antiga que transportava os recém casados, contorno o muro da Tapada de Mafra. É uma notável construção de alvenaria de pedra. É talvez o mais extenso muro contínuo existente em Portugal. 
Paz, prox., Mafra. 11 de maio de 2019

A Tapada está dividida em duas frações principais: A Tapada Real e a Tapada Militar. Desta última guardo a memória de aí ter cumprido o Serviço Efetivo Normal, ou serviço militar obrigatório, durante quatro meses do ano 1992. Outros quatro meses seriam cumpridos na Carregueira, perto do Cacém, no concelho de Sintra. A experiência não foi especialmente gratificante. Sentia que estava a aprender técnicas de combate obsoletas, que eram aquelas que tinham sido praticadas na defesa dos antigos territórios coloniais, na guerrilha de mato. As armas, a famosa G3, eram desse período. Mas guardo a memória da relação com a terra, de como nos servimos do terreno para defesa e progressão sobre o inimigo. Aprendi igualmente que o silêncio nos protege e que a disciplina é absolutamente crucial para a sobrevivência. Pressentia que em combate, quando se entrava num profundo nível de dureza e abstração, havia algo de contraditório e fascinante. Quando o medo fosse tomado pela loucura de nada ter a perder e de tudo poder perder. Sangue, corpos, fragmentados, horror. É a face cruel do regresso à animalidade e à perda da civilidade. Esta viagem, com o seu caminhar duro, de algum modo remetia-me para essa memória, em que a própria leitura de um mapa era importante e os enganos poderiam ter consequências nefastas. A passagem pelo exército foi a experiência da angústia, do “e se isto fosse verdade?”.
Mafra, prox. 11 de maio de 2019

Ficou a experiência radical do medo, de me aproximar do que isso pode significar no perturbador limite do fim da vida. Estar à beira de uma linha vermelha, de tudo o que vai terminar; decantar, em poucos segundos, toda uma existência, fazer uma síntese, ali encontrar o amor, os filhos, talvez, tudo o que falhou, tudo o que valeu a pena antes do nosso regresso à poeira lenta. 
Mafra. 11 de maio de 2019

Em Mafra fiz uma pequena pausa num café. Depois segui para oeste, por uma rua que está alinhada com o eixo do monumental palácio. O objetivo era o de ir direito à capela de Nossa Senhora do Socorro, também conhecida por Senhora do Arquiteto. A malha urbana de Mafra tem-se espraiado pelos territórios poente a um ritmo bastante acelerado, acompanhada por uma rede viária que cria uma teia que tudo enreda. A esta voragem do betão apenas se escapam as cotas baixas, de vales encaixados. À medida que desço, à procura de algum silêncio, vou ouvindo com uma nitidez cada vez maior, alguém a manusear uma moto-serra. Junto à capela, num lugar muito tranquilo, há uma pequena courela onde trabalha um casal. Sento-me num banco junto à capela para descansar um pouco. Apenas ouço o som da moto-serra. Aguardo algum tempo na esperança de ter silêncio. Não tenho sorte. Atravesso o rio Pequeno, um afluente da Ribeira de Cheleiros, e subo a encosta oposta. Vou na direção de Boco e pouco depois estava nessa aldeia. Pergunto a um senhor qual o melhor caminho para chegar a Carvalhal, a minha próxima referência. O itinerário é-me explicado com uma notável e rara precisão. Seriam menos de 1500 metros até lá. Avanço. O Sol já se encontrava baixo. Decido procurar um local para pernoita entre aquelas duas aldeias. Atravesso campos abandonados ao mesmo tempo que ouço motas de baixa cilindrada não muito longe dali. Afasto-me do trilho principal e procuro um local para montar a tenda. Há muitas pedras e algum tojo. Decido dormir ao relento. O tempo está húmido. Sente-se uma aragem atlântica. No dia seguinte chegaria ao Cabo da Roca, o fim da viagem. Esta era a última noite de campo.
Carvalhal, prox., Mafra. 11 de maio de 2019




Dia: 2019/05/11, sábado
Lugar referência: Mafra
Pernoita: Carvalhal, prox., Mafra
Quilómetros percorridos: 38,7
Quilómetros acumulados: 502,3
Concelhos atravessados: Torres Vedras; Mafra
Cartas militares: 375; 389; 388; 402
Fotografia inicial: dg902879, 06h17
Fotografia final: dg903409, 20h38
Duração trabalho fotográfico: 14h21
Fotografias: 531
Somatório fotografias: 6626
Fotografias selecionadas: 129 (24,29%)

10 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 15] Com a chuva sou obrigado a guardar a câmara fotográfica. Caminho de mãos livres, rosto à chuva. Por breves instantes, penso em registos que não posso fazer, imagens que fixo temporariamente em pensamento. Reflito sobre algumas contradições deste caminhar. Se por um lado há como que o desejo de regresso a uma condição antiga, de uma integração mais plena na Natureza, por outro lado há também a pulsão de fixar as mil imagens desse processo simultâneo de aproximação e afastamento, agarrar o tempo. As câmaras fotográficas atuais são computadores, muitas vezes com uma notável capacidade de processamento de dados. Esta complexidade tem vindo a crescer e as câmaras dos telemóveis são um bom exemplo disso. Uma questão que me coloco é se não será necessário um mercado aberto, fortemente concorrencial e global para produzir, e tornar acessíveis, estes dispositivos que nos transportam ao futuro breve. Não creio que uma sociedade fechada possa produzir estes equipamentos. Talvez seja mesmo necessária uma sociedade tendencialmente liberal para que este movimento, de desenvolvimento tecnológico, se desenvolva, o qual, no entanto, não deixa de trazer consigo enormes contradições e desigualdades. Há uma mesma compulsão para o “bem” e para o “mal”. São os dois gumes de uma faca. Problemas que se resolvem sempre à beira do abismo. E talvez estejamos mesmo todos mais perto de algo que não vai correr bem.
Cercal, prox., Cadaval. 10 de maio de 2019

A chuva continua mas com menor intensidade. Ao meio-dia, quando já me encontrava perto do topo da serra de Montejunto, deixara mesmo de haver precipitação. Agora era o nevoeiro a envolver o lugar. Estava na última montanha. Era cumprido mais um objetivo desta caminhada: percorrer todo este sistema orográfico entre a serra da Estrela, que tinha deixado há sete dias, e agora Montejunto, que fora, num passado não muito recuado, bem mais fria, como o atestam os poços de gelo.
Serra de Montejunto, Cercal, Cadaval. 10 de maio de 2019
O nevoeiro confere àquela paisagem uma realidade singular, apelativa. É como se o observável se transformasse em desenho, numa representação de si próprio. Há suavidade nos contornos, a visibilidade que se perde gradualmente. Vão-se revelando, a cada passo do caminhar, novos aspetos da paisagem. O silêncio parece acentuar-se. Há alguma inquietude nos lugares ocultos. A floresta é um desenho novo e complexo. 
Serra de Montejunto, Cercal, Cadaval. 10 de maio de 2019

Alguém morreu. Num eucalipto estão depostas flores, alguns dizeres, mensagens tocantes de carinho e de saudade. Há a imagem de um jovem com roupas desportivas, de ciclista, que ali terá tido um acidente fatal. Questiono-me se estaria só ou acompanhado, como tudo teria acontecido, quando. Não era a primeira vez que encontrava estas memórias de morte na estrada, estas evocações, composições de flores que convocam presenças ausentes, a dureza de um momento trágico que, num ápice de segundo, transformam radicalmente mundos familiares. Numa caminhada longa e solitária a morte é um pensamento que aflora à superfície do quotidiano desamparado: a possibilidade de uma queda, ou de subitamente me sentir mal, qualquer coisa que possa acontecer na solidão do espaço aberto. Não deixa de haver uma noção do perigo, no caminhar num limbo de instabilidade, mas a vida tem uma enorme força e uma grande resiliência. Esta é a resposta de um corpo que se move sobre uma terra austera, que nos exige esforço para nos construirmos. É nesse movimento de procura que encontramos o sentido de estar vivo, que pode ser o cumprimento de uma linha de espaço-tempo desenhada num mapa. E essa linha, como o contorno da sombra projetada do corpo sobre o solo, tem a extensão de toda a permanência efémera. Há um tempo longo, plástico, com diferentes durações dentro de si, continuidades fragmentadas articuladas em espaços desconexos. A eternidade é um momento no pensamento breve do medo. Criamos narrativas e a literatura dos sonhos coletivos. Na solidão, passo sobre passo, questionamos os mais belos poemas. 
Serra de Montejunto, Cadaval. 10 de maio de 2019

Serra de Montejunto, Cadaval. 10 de maio de 2019

O alto da serra de Montejunto está coberto de nevoeiro, vento e frio. Descanso um pouco entre as ruínas de um antigo convento que nunca chegou a ser concluído. A serra tem uma série de vestígios de povoamento muito antigo como necrópoles neolíticas ou fortificações castrejas.
Serra de Montejunto, Alenquer/Cadaval. 10 de maio de 2019

Casal do J. Roque, Torres Vedras. 10 de maio de 2019

À medida que desço a serra, o tempo vai melhorando. Pouco depois observo que o cimo da serra está limpo. Já não havia nevoeiro. Permanecem nuvens no céu, mas não haverá mais chuva. Caminho, sensivelmente, na direção nascente-poente. Passo a Casais da Foroana, depois Vila Verde dos Francos. Segue-se Casais da Fonte da Pipa, Lapaduços e Aldeia Grande. Estou agora no vale do rio Alcabrichel, que não estava nos meus planos iniciais. É mais um desvio motivado pela cartografia desatualizada. Prossigo para Maxial, Ermigeira, Monte Redondo. Após Lapas Grandes começo a procurar um local para passar a noite. Os terrenos são aqui muito abertos e expostos. Deixo a estrada e sigo por caminhos de terra até às margens da ribeira da Macheia, afluente do rio Sisandro, que não corre longe daqui. Monto a tenda junto a uma vinha. Era o final do 13º dia de caminhada.
Quinta das Lapas, Lapas Grandes, Torres Vedras. 10 de maio de 2019

Matacães, prox., Torres Vedras. 10 de maio de 2019




Dia: 2019/05/10, sexta-feira
Lugar referência: Serra de Montejunto
Pernoita: Matacães, prox., Torres Vedras
Quilómetros percorridos: 39,8
Quilómetros acumulados: 463,6
Concelhos atravessados: Cadaval; Rio Maior; Azambuja; Alenquer; Torres Vedras
Cartas militares: 351; 363; 362; 375
Fotografia inicial: dg902249, 06h26
Fotografia final: dg902878, 20h31
Duração trabalho fotográfico: 14h05
Fotografias: 630
Somatório fotografias: 6095
Fotografias selecionadas: 144 (22,86%)