terça-feira, 11 de junho de 2019

2 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 07] A manhã praticamente começa com a subida a partir da Portela do Folgosinho. Este é um passo claramente visível da região de Viseu, que habito e que sempre me seduzira a sua transposição. A partir daqui estarei nas cotas mais elevadas da serra da Estrela. Ainda terei cerca de 12 quilómetros de caminhada até à represa de vale Rossim. Daí seguirei na direção da Nave da Mestra. É na proximidade desta nave que observo a neve.
Portela do Folgosinho, prox. Gouveia. 2 de maio de 2019
A presença da neve, invulgar nesta altura do ano, era quase como o completar pleno de uma experiência de habitar uma paisagem com todos os estados de clima que podemos presenciar aqui na Terra. Três dias antes estava a lutar contra a desidratação pelo calor, agora o frio intenso, o solo coberto de neve.
Serra da Estrela. Gouveia. 2 de maio de 2019
A neve era como encontrar desenhos pousados sobre o solo. Eram como esboços efémeros para pinturas. Sobre este branco desenharia todas as viagens. Era algo de mágico o que ali encontrava. Manchas sobre texturas, tudo em movimento. A água corria célere, no degelo. Avanço para encontrar o resto do caminho. As linhas e as manchas são um fascínio. Voltava a recordar as gravuras do Côa. Quem teria feito aqueles desenhos? A neve evocava o branco do papel, mas ali, com o granito escuro recortado pelo branco sobreposto, tudo aquilo pareciam ser traços sem limites. O frio contracenava com a sedução efémera de toda aquela paisagem que agora, de hora para hora, desaparecia, ao voltar aos dias comuns que o tempo quente das terras baixas anunciava.
Serra da Estrela. Manteigas/Seia. 2 de maio de 2019
A beleza da neve escondia a dificuldade em caminhar sobre ela. Os trilhos ficam parcialmente ocultos, por vezes obstruídos, os pés afundam-se inesperadamente a qualquer momento. Sobre o manto branco há água a correr. Quanto mais subia na direção do ponto mais elevado da serra, mais neve encontrava, mais difícil era a progressão no terreno. Detenho-me. Olho para trás. Deixara os meus passos inscritos na neve. Era como se aquela curta linha apontasse todo o percurso feito até aqui. Vida condensada em esquiço efémero. O calor iria apagar os passos. Dentro de meses, no próximo Inverno, outros nevões se abaterão sobre aquele solo. Chego finalmente à estrada que liga Seia à Covilhã. Muito em breve estaria na Torre.
Serra da Estrela. Manteigas/Seia. 2 de maio de 2019
Há três lojas num centro comercial. Entro numa delas. A ideia era apenas comprar uma garrafa de água para ter maior capacidade, para ficar com perto de 4 litros de armazenamento. Saí de lá com uma sandes de queijo e presunto que não estava nos meus planos. Não resisti. Sentei-me, não longe daquele conjunto de edifícios, a comer aquele que seria o meu jantar, pois o dia já estava no fim. O excesso de sal, para a alimentação que eu vinha a fazer, deixou-me com uma necessidade acrescida de água. Só me aperceberia desta realidade mais tarde, já noite entrada, quando me fixara a meia encosta da montanha.
Serra da Estrela. Manteigas/Seia/Covilhã. 2 de maio de 2019
Este final de tarde, depois de me abastecer de água do próprio degelo, é também uma celebração da luz, de um fim de tarde que ilumina o trajeto dos dias vindouros. Desço das cotas mais altas como quem percorre o dorso de um grande animal. É este animal que nos transporta, que nos imprime o movimento. É o movimento sobre o movimento. Estamos unidos, em vida e para a morte, sobre o imenso corpo terrestre que partilhamos com todos os seres vivos, pois todos temos uma mesma origem.
Serra da Estrela. Seia/Covilhã. 2 de maio de 2019
Se o dia começara com uma subida a partir da Portela do Folgosinho, agora avançava, da mesma forma, sobre um plano acentuadamente inclinado. O objetivo era o de também abandonar as terras altas onde o frio se faz sentir com mais intensidade e para o qual eu não estava devidamente preparado.
Serra da Estrela. Seia/Covilhã. 2 de maio de 2019
Por ter atingindo um dos principais, e talvez o mais simbólico objetivo, houve a sensação de ter chegado ao fim da viagem. Mas apenas estava cumprido o primeiro terço da caminhada. Quando ao fim do dia me debruçava, como que de uma varanda, para as terras a sul desta mole montanhosa, imediatamente se tornava claro que o “combate” iria continuar por linhas tortuosas, muitas vezes sem marcas inscritas no solo por anteriores caminhantes.
Serra da Estrela. Seia/Covilhã. 2 de maio de 2019


Dia: 2019/05/02, quinta-feira
Lugar referência: Torre
Pernoita: Cerro do Pombalinho
Quilómetros percorridos: 40,6
Quilómetros acumulados: 173
Concelhos atravessados: Gouveia; Manteigas; Seia; Covilhã
Cartas militares: 202; 213; 212; 223
Fotografia inicial: dg898371, 06h08
Fotografia final: dg898917, 22h03
Duração trabalho fotográfico: 15h55
Fotografias: 547
Somatório fotografias: 2134

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