domingo, 16 de junho de 2019

8 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 13] Choveu durante toda a noite mas, ao acordar, tenho tudo seco. Faço o exercício matinal de mudar de roupa deitado. Saio da tenda e desmonto-a rapidamente para evitar o mais possível a chuva. Procurarei, durante uma pausa, secar a tenda, caso a meteorologia o permita. No solo ficam os fetos, verdes vivo, com que preparara o leito do sono. Ficava uma presença ausente, vestígio de passagem por ali. Intervenção mínima, sinal. Mensagem sem código óbvio, enigma. Seduzem-me, estas marcas de habitar temporário, passagem, como se outro alguém por ali tivesse passado.
São Mamede, prox., Batalha. 8 de maio de 2019

Quando começo a caminhar hesito na direção. No fim do dia anterior tinha uma linha de candeeiros que referenciavam a estrada, agora, desligados, não os via. Andei um pouco até perceber que estava perdido. Procuro reconstituir esses poucos metros de caminho e voltar ao local de pernoita. Consigo. Mas hesito novamente. A floresta é densa. Detenho-me. Uns dez minutos depois passa um automóvel. Sigo para a linha do seu rasto de som. Em breve estaria de novo na estrada.
São Mamede, prox., Batalha. 8 de maio de 2019

Depois de passar a São Mamede, apanho a estrada na direção do Alqueidão da Serra. Estou novamente em cotas relativamente elevadas. À chuva junta-se agora o nevoeiro. Está vento, ouço o som surdo das eólicas, mas não as consigo vislumbrar. Caminho na berma da estrada. Há um condutor que me buzina visivelmente irritado por o ter obrigado a travar ligeiramente, quando uma outra viatura, em direção contrária, se cruzara naquele mesmo local.
São Mamede, Batalha. 8 de maio de 2019
Alqueidão da Serra, prox., Porto de Mós. 8 de maio de 2019

Ao fim de alguns quilómetros estava em Porto de Mós. Na atualidade, em que cada vez mais se questiona a postura humana perante o ambiente e a destruição da Natureza, poderá haver a tentação de diminuir as cidades, a sua importância na evolução humana ao longo dos dez últimos milénios. Com todos os seus problemas, que crescem com a sua dimensão, as cidades são fabulosas construções humanas, a mais complexa “manufatura” que somos capazes de erguer. São elas que elevam indefinidamente o patamar do pensamento, a linguagem simbólica e a tecnologia. Podem ser predadoras, mas ao mesmo tempo são irrecusáveis e não param de crescer, praticamente todas. A cidade deve ser para todos. É o direito à cidadania e à liberdade. É como uma “cidade infinita”, contida num espaço delimitado, porque infinita é a capacidade de construirmos um imaginário em expansão. Conceito, território universal que se estende por um espaço-tempo ilimitado, que se espraia pelas galáxias do desconhecido. Mas para esta “cidade” existir, global, há que entender o seu espaço, as paisagens a partir das quais se ergue, os mais vastos territórios, mesmo que inabitados, e as dependências de uma biosfera da qual todas as formas de vida dependem. É este o nosso planeta.
Porto de Mós. 8 de maio de 2019

Os movimentos de regresso a uma Natureza intacta não são viáveis, são um sonho de uma realidade que ninguém hoje viveu, é o pretender voltar a um lugar que deixou de existir, que está profundamente transformado, que apenas existe em pensamento. Depois há um motivo para não tentarmos viagens impossíveis. Esse motivo é de uma feição quase poética. Muito do que construímos como civilização é belo, forte, extraordinário. A “terra prometida”, o “paraíso”, está em muitos aspetos das cidades contemporâneas. Quando estamos em campo aberto, quando caminhamos sob uma tempestade, percebemos a importância e parte do significado de uma cidade, como construção orgânica, poderosa máquina, mesmo com todas as suas fragilidades. A arquitetura, a arte, a literatura, são expressão de urbanidade.
Porto de Mós. 8 de maio de 2019

E se pudéssemos regressar que ponto no passado iríamos escolher? A nossa ruralidade faminta do Estado Novo, voltaríamos às trocas diretas, deixaríamos de usar computadores e telemóveis, os aviões ficariam para sempre no solo? E toda a tecnologia médica deixaria de ser usada? Iríamos voltar a assistir ao aumento da mortalidade infantil? O regresso à barbárie? Deixaríamos também o complexo aparelho jurídico que nos permite alguma igualdade? Sim, ainda há muito caminho para percorrer, mas nunca se viveu tão bem como hoje. Haverá regressões momentâneas em determinadas condições, mas não podem ser comparadas aos modos de vida humana em tempos bem recentes.
A câmara fotográfica que transporto comigo é um dispositivo de enorme complexidade. O telemóvel que uso para fazer chamadas, ou fazer pesquisas na Internet, tem uma capacidade de processamento superior àquela que há cinquenta anos levou o homem à Lua. Estes aparelhos resultam de um conjunto de conhecimentos adquiridos por uma reflexão prolongada ao longo de séculos por um incontável número de pessoas. O mesmo acontece com o papel em que tenho os mapas impressos, os riscadores, a tenda, os sacos-cama, a mochila, as botas, mesmo os alimentos que carrego comigo, sejam eles maçãs ou pão. Uma cidade é como a tabela periódica. Se naquela estão todos os elementos de que é feito o universo, nas cidades estão todas as formas de que é composta a nossa realidade, uma parte do futuro e a arte como a invenção desse mesmo futuro.
Que a "fuga" seja apenas para o futuro, pois mais não temos para onde ir. Mas poderíamos deixar a literatura, a arte, a arquitetura, o cinema, tantas, tantas, coisas mais? O que ficaria então, depois do abandono da razão, da linguagem simbólica? Não conseguimos regressar às árvores, perder o bipedismo, o polegar oponível. É muito provável que a espécie humana se venha a extinguir, como a tantas outras poderosas espécies aconteceu no passado, mas regressões não são possíveis. Uma viagem pedestre, com meios relativamente reduzidos, apenas quer vislumbrar a memória que permanece nas nossas células, porque o que aqui se procura é o futuro, é a impossibilidade de parar, mesmo a vertigem da velocidade, ou um ponto em que algo se funde e passa a ser uma matéria diferente. 
Serra dos Candeeiros, Porto de Mós. 8 de maio de 2019

Não é possível. As cidades são um sonho que não podemos abandonar. Termos que as continuar a aperfeiçoar, trazer mais natureza para dentro de si, integrar o conhecimento cada vez mais vasto que temos da realidade. As cidades são o berço da democracia e da participação, são confluência de saberes longamente maturados, são invenção do passado, comunicação, teia de relações entre diferentes. São possibilidade de futuro e de liberdade. São ameaçadoras, muitas vezes destruidoras, mas não deixam de ser também lugares de união, corpo de vanguarda, corpo de resistência ao retrógrado. São o espaço universal que continuamente se expande. Solo e casa comum, são arquitetura sublimada, são futuro, floresta, labirinto, construção e vazio, montanha e oceano, célula e ouro, pássaro e fogo, medo e desenho. Lugar único de fuga imóvel.
Serra dos Candeeiros, Porto de Mós. 8 de maio de 2019

Saio de Porto de Mós e inicio de imediato a subida à serra dos Candeeiros, pelo lado norte. Atingindo as cotas mais elevadas, deixa de haver desníveis relevantes. A paisagem é tranquila e o caminhar também. Ao fim do dia chego ao Cabeço Gordo e deste desço para o Arco da Memória, que evoca os domínios agrários da Abadia de Alcobaça. Irei pernoitar nas proximidades do Moinho da Portela. Estou também, de novo, com torres eólicas por perto. Não chovera durante toda a tarde. Quando monto a tenda tenho tudo seco.
Arco da Memória, Serra dos Candeeiros, Porto de Mós. 8 de maio de 2019

Serra dos Candeeiros, Porto de Mós. 8 de maio de 2019



Dia: 2019/05/08, quarta-feira
Lugar referência: Porto de Mós
Pernoita: Serra dos Candeeiros
Quilómetros percorridos: 32,5
Quilómetros acumulados: 384,6
Concelhos atravessados: Batalha; Porto de Mós; Alcobaça
Cartas militares: 308; 318; 317
Fotografia inicial: dg901467, 06h36
Fotografia final: dg901907, 20h17
Duração trabalho fotográfico: 13h41
Fotografias: 441
Somatório fotografias: 5124
Fotografias selecionadas: 105 (23,81%)

1 comentário:

  1. Bela e sensata a tua defesa da cidade infinita, onde foi possível construir, resumindo, a civilização tal como a conhecemos. O objetivo agora será a construção de novas utopias dentro dos seus limites. E neste aspeto a arquitectura é um instrumento vital dessa possível transformação. O problema da requalificação das cidades é o seu legado, as suas estruturas, o seu ordenamento atual. O que fazer com ele ? Talvez seja mais fácil mudar primeiro o homem. E se ele mudar, tudo muda, mesmo que essa mudança profunda seja apenas uma nova consciência do real. E quantas oportunidades nascerão ? Muitas, decerto. Porém, também a consciência dos homens tem um legado, uma estrutura de valores que foram sedimentados através nos anos, dos séculos. Precisamos por isso também de novos arquitetos do pensamento.

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