[Caminhar oblíquo 16] A noite junto da vinha fora tranquila. Depois de atravessar a aldeia de Matacães, concelho de Torres Vedras, passo o rio Sisandro. Caminho ao lado da linha ferroviária. Pouco depois passo à estação de Runa; do lado oposto da estrada localiza-se o Lar dos Veteranos Militares. Este foi um espaço que acolheu militares vindos da guerra nos antigos territórios coloniais, muitos deles mutilados. Já noutras ocasiões passara por aqui e sempre me inquietava com o imaginar o sofrimento daqueles antigos combatentes. Fotografo a estação, que parece semi abandonada. No cais está um jovem com uma guitarra à espera do comboio. Prossigo para sul, na direção de Ribaldeira e depois Furadouro, onde reabasteço de água. Já tenho à minha frente a Serra do Socorro, coroada por um santuário mariano. Terei que atravessar a A8 por um túnel para esta última subida íngreme.
Matacães, prox., Torres Vedras. 11 de maio de 2019 |
Runa, Torres Vedras. 11 de maio de 2019 |
Runa, Torres Vedras. 11 de maio de 2019 |
A Senhora do Socorro, foi o último miradouro de altitude. Não teria a necessidade de ali subir. Era um local onde já estivera no passado. Mas, apesar do cansaço, não hesitei em avançar sobre o declive acentuado da encosta norte. Era por aqui que estava desenhado o itinerário. Seria a despedida das montanhas. A vista a todo o redor impressionava.
Gradil, Mafra. 11 de maio de 2019 |
Chego a Gradil, onde um casamento acabara de acontecer. Com o habitual espanto, reparo, sobretudo, nos vestidos femininos em que me parece sempre que os cortes, as cores e os tecidos, raramente se enquadram muito bem com quem os veste. Imagem de uma certa insensatez a que não escapam os homens com fatos menos vistosos, mas igualmente pouco benéficos, gozando apenas da vantagem de alguma descrição. Ao deixar a aldeia, depois de ser buzinado, em jeito de cumprimento, pelo condutor de uma viatura antiga que transportava os recém casados, contorno o muro da Tapada de Mafra. É uma notável construção de alvenaria de pedra. É talvez o mais extenso muro contínuo existente em Portugal.
Paz, prox., Mafra. 11 de maio de 2019 |
A Tapada está dividida em duas frações principais: A Tapada Real e a Tapada Militar. Desta última guardo a memória de aí ter cumprido o Serviço Efetivo Normal, ou serviço militar obrigatório, durante quatro meses do ano 1992. Outros quatro meses seriam cumpridos na Carregueira, perto do Cacém, no concelho de Sintra. A experiência não foi especialmente gratificante. Sentia que estava a aprender técnicas de combate obsoletas, que eram aquelas que tinham sido praticadas na defesa dos antigos territórios coloniais, na guerrilha de mato. As armas, a famosa G3, eram desse período. Mas guardo a memória da relação com a terra, de como nos servimos do terreno para defesa e progressão sobre o inimigo. Aprendi igualmente que o silêncio nos protege e que a disciplina é absolutamente crucial para a sobrevivência. Pressentia que em combate, quando se entrava num profundo nível de dureza e abstração, havia algo de contraditório e fascinante. Quando o medo fosse tomado pela loucura de nada ter a perder e de tudo poder perder. Sangue, corpos, fragmentados, horror. É a face cruel do regresso à animalidade e à perda da civilidade. Esta viagem, com o seu caminhar duro, de algum modo remetia-me para essa memória, em que a própria leitura de um mapa era importante e os enganos poderiam ter consequências nefastas. A passagem pelo exército foi a experiência da angústia, do “e se isto fosse verdade?”.
Mafra, prox. 11 de maio de 2019 |
Ficou a experiência radical do medo, de me aproximar do que isso pode significar no perturbador limite do fim da vida. Estar à beira de uma linha vermelha, de tudo o que vai terminar; decantar, em poucos segundos, toda uma existência, fazer uma síntese, ali encontrar o amor, os filhos, talvez, tudo o que falhou, tudo o que valeu a pena antes do nosso regresso à poeira lenta.
Mafra. 11 de maio de 2019 |
Em Mafra fiz uma pequena pausa num café. Depois segui para oeste, por uma rua que está alinhada com o eixo do monumental palácio. O objetivo era o de ir direito à capela de Nossa Senhora do Socorro, também conhecida por Senhora do Arquiteto. A malha urbana de Mafra tem-se espraiado pelos territórios poente a um ritmo bastante acelerado, acompanhada por uma rede viária que cria uma teia que tudo enreda. A esta voragem do betão apenas se escapam as cotas baixas, de vales encaixados. À medida que desço, à procura de algum silêncio, vou ouvindo com uma nitidez cada vez maior, alguém a manusear uma moto-serra. Junto à capela, num lugar muito tranquilo, há uma pequena courela onde trabalha um casal. Sento-me num banco junto à capela para descansar um pouco. Apenas ouço o som da moto-serra. Aguardo algum tempo na esperança de ter silêncio. Não tenho sorte. Atravesso o rio Pequeno, um afluente da Ribeira de Cheleiros, e subo a encosta oposta. Vou na direção de Boco e pouco depois estava nessa aldeia. Pergunto a um senhor qual o melhor caminho para chegar a Carvalhal, a minha próxima referência. O itinerário é-me explicado com uma notável e rara precisão. Seriam menos de 1500 metros até lá. Avanço. O Sol já se encontrava baixo. Decido procurar um local para pernoita entre aquelas duas aldeias. Atravesso campos abandonados ao mesmo tempo que ouço motas de baixa cilindrada não muito longe dali. Afasto-me do trilho principal e procuro um local para montar a tenda. Há muitas pedras e algum tojo. Decido dormir ao relento. O tempo está húmido. Sente-se uma aragem atlântica. No dia seguinte chegaria ao Cabo da Roca, o fim da viagem. Esta era a última noite de campo.
Carvalhal, prox., Mafra. 11 de maio de 2019 |
Dia: 2019/05/11, sábado
Lugar referência: Mafra
Pernoita: Carvalhal, prox., Mafra
Quilómetros percorridos: 38,7
Quilómetros acumulados: 502,3
Concelhos atravessados: Torres Vedras; Mafra
Cartas militares: 375; 389; 388; 402
Fotografia inicial: dg902879, 06h17
Fotografia final: dg903409, 20h38
Duração trabalho fotográfico: 14h21
Fotografias: 531
Somatório fotografias: 6626
Fotografias selecionadas: 129 (24,29%)
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