quarta-feira, 12 de junho de 2019

3 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 08] O adiantado da tarde anterior e a aproximação da noite, não me permitira baixar um pouco mais de altitude — estava a cerca de 1580 metros. Estava sobre uma linha de festo sem a possibilidade de procurar um lugar mais abrigado. O solo pedregoso, o declive acentuado, não me ofereciam alternativas. Não foi possível montar a tenda, mas consegui um local minimamente abrigado para estender os sacos-cama. Estava na beira de uma ravina. Ouvia com toda a clareza um ribeiro que resultava do degelo das últimas neves da serra e, ao longe, via a serra da Gardunha e o Fundão, no seu sopé, como uma mancha de luzes que da cidade irradiava e se estendia pela planície. Ainda conseguia ver Castelo Branco e lembrar-me de momentos em que, naquelas terras baixas e de verões tórridos, observava ao longe, estes mesmos lugares serranos onde agora me encontrava. Estava no coração montanhoso de Portugal. A escuridão tinha descido. Pontos luminosos começavam a despontar no céu. Infinito de ausências maiores, a solidão lenta da espera da manhã seguinte em sono descontínuo. A noite fora desconfortável, fria.
Cova da Beira, Fundão. 2 de maio de 2019
Cerro do Pombalinho. Covilhã/Seia. 3 de maio de 2019
Só dias mais tarde, quando abandonava as montanhas, viria a perceber o significado do local em que agora me encontrava. Estava no Cabeço dos Pinheiros, numa cumeeira sensivelmente entre Unhais da Serra e Alvoco da Serra. A singularidade deste lugar apenas se devia às escassas marcas de presença humana. Foram cerca de seis ou sete quilómetros sem trilhos ou estradas. Este seria o único troço de toda a caminhada em que me sentia num lugar esquecido, numa terra em que ninguém reparara. Era um espaço de uma enorme liberdade. São muito raros, no território hoje Portugal, pedaços de terra onde não estejam bem vincadas intervenções humanas.
Cabeço dos Pinheiros. Covilhã/Seia. 3 de maio de 2019
Muralha. Covilhã/Seia. 3 de maio de 2019
Alto das Portelinhas. Covilhã/Seia. 3 de maio de 2019
Continuo a caminhar. Passo ao vértice geodésico Muralha, depois de uma descida acentuada chego a uma portela para, imediatamente, me "fazer" à próxima subida, até ao Alto das Portelinhas. Prossigo por terrenos vagos até ao vértice Fojo, onde encontro terras revolvidas e uma estrada lajeada. Este aparenta ter sido um local onde se fez alguma prospeção mineira, mas há muito abandonada. Um pouco mais tarde deparava-me com uma primeira torre eólica, seguir-se-ia uma série interminável.
Fojo. Covilhã/Seia. 3 de maio de 2019
Aproximava-me da serra do Açor, mas não chegaria a ir a um dos seus pontos mais elevados, São Pedro do Açor. Subiria ao Cabeço do Gondufo, que tem exatamente a mesma altitude que aquele outro ponto: 1342 metros acima do nível médio do mar. A partir daqui desceria para sul por uma colina, a acompanhar as primeiras águas do rio Ceira, que tem a nascente neste local. Pouco depois regressava à proximidade das eólicas, que iria acompanhar ao longo de muitos quilómetros. A serra do Açor era também a memória de ali ter estado noutras ocasiões, umas das quais, na década de 1990, em que o cabeço estava coberto por um nevão da noite anterior. Ao longe podia então observar a serra da Estrela e toda esta linha de topos que acabara agora de percorrer. Talvez tenha nascido nessa altura, há quase três décadas, o desejo de percorrer essa linha de festo.
Serra do Açor. Arganil/Covilhã. 3 de maio de 2019
O caminhar ia sendo entrecortado por pausas. Era inevitável parar, descansar, comer qualquer coisa, descalçar as botas, abstrair-me da dureza continuada do caminhar, das dores nos pés. As pausas eram acompanhadas de uma certa disciplina com os horários. À hora de almoço fazia uma interrupção mais prolongada. Punha então a tenda a secar da humidade noturna e, quando estava sol, aproveitava também para pôr os sacos cama a arejar. Deitava-me um pouco e ausentava-me de mim mesmo. Dormitava, porventura. Abstraía-me do cansaço. Pensava no significado desta viagem. De um desejo de desenho, de mapa, de atlas, de toda a terra representada. Esse desenho poderia não ser feito de traços sobre papel, ser arquitetura imaginada, lugar novo, antes por ninguém percorrido. Um planeta subitamente transformado em universo. Um rio que atravessa uma biblioteca. Um arquivo onde de repente nos descobrimos. Luz que não era luz, o princípio de tudo, como se sempre andasse à procura desse ponto recuado num tempo que não era acessível, jamais. Todas as paisagens, meio áridas ou desertas, mas também as florestas, as planícies abertas, os rios torrenciais, os abismos, as grutas intermináveis. O topo de uma montanha gelada que se precipita sobre o mais seco deserto. Tudo isto antes e depois de uma cidade. Que derradeira fotografia poderia representar esta linha de partida, este desenho desmaterializado?
Serra da Cebola. Arganil/Covilhã. 3 de maio de 2019
Calçava as botas, arrumava a mochila. Lento, retomava a caminhada. Em breve estaria quente, com uma passada costumeira. Contínua.

Dia: 2019/05/03, sexta-feira
Lugar referência: Açor
Pernoita: Portela de Silva
Quilómetros percorridos: 28,9
Quilómetros acumulados: 201,9
Concelhos atravessados: Covilhã; Seia; Arganil; Pampilhosa da Serra
Cartas militares: 223; 234; 233; 244
Fotografia inicial: dg898918, 05h46
Fotografia final: dg899452, 20h49
Duração trabalho fotográfico: 15h03
Fotografias: 535
Somatório fotografias: 2669
Fotografias selecionadas: 129 (24,11%)

1 comentário:

  1. Bonito texto e grande aventura. Uma sugestão: seria mais informativo o troço percorrido ser graficamente apresentado com a totalidade do percurso da viagem.

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