[Caminhar oblíquo 17] Levanto-me. Sinto as botas um pouco apertadas, mas não tinha dores. Se nos primeiros dias só ao fim de cerca de uma hora de caminhada é que parava para comer qualquer coisa, agora acordava com fome e com a sensação de fraqueza, de precisar de ingerir algo. O dia estava tranquilo. A noite amena prometia temperaturas elevadas para a jornada, mas a proximidade do oceano atenuaria esse efeito. Estava já muito longe do vale do Douro de onde partira. De meio milhar já percorridos, tinha pouco mais de 25 quilómetros pela frente.
Carvalhal, prox., Mafra. 12 de maio de 2019 |
Ainda o Sol não se erguera no horizonte quando atravessei o Carvalhal. Daí subi para Odrinhas. A serra de Sintra era já claramente visível, bem recortada à minha frente. Prossigo em direção a Codeceira e, depois, Aldeia Galega. Antes de chegar a Janas opto por um atalho à esquerda. Essa estrada de terra levar-me-á até Mucifal. Colares viria a seguir. Descanso mais um pouco. Estou em paisagens que me são muito familiares. Prossigo.
Carvalhal, Mafra. 12 de maio de 2019 |
O meu objetivo era, de Almoçageme, fazer um corta-mato até Ulgueira. “Quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos”, foi a resposta de um senhor à minha pergunta sobre se haveria por ali um caminho. Não corro riscos.
Já depois de Almoçageme, ao andar pela estrada em direção ao Pé da Serra, uma mulher jovem caminha à minha frente com um vestido leve e claro. Está calor. O movimento dos carros perturba constantemente este caminhar. Não há bermas. Por breves momentos penso nessa ausência de quase tudo em que vivera imerso durante duas semanas. É pouco tempo, mas foi uma viagem muito mais longa do que essa duração. Num vislumbre recordava gestos e palavras, o toque, o tato da mão, o corpo quente, os cabelos lavados, a humidade da respiração, um perfume familiar, o movimento delicado de um corpo belo, a voz demorada em conversa lenta, as palavras que não são nossas. A cor funda de um olhar íntimo. Sensualidade. Estava a regressar; como a água quente que corre pelo corpo.
Odrinhas, prox., Sintra. 12 de maio de 2019 |
Godigana, prox., Sintra. 12 de maio de 2019 |
Em Ulgueira sim, apanho um atalho para evitar a passagem pela Azoia. Dobro um vale e subo uma pequena ladeira. Volto à esquerda, tenho à minha frente o Farol do Cabo da Roca.
Alfaquiques, prox., Sintra. 12 de maio de 2019 |
Quando termino a caminhada sinto estar perto de um limite, que não era apenas o fim da viagem. A um cansaço muito acentuado sobrepus sempre a vontade de continuar. Tenho os pés ligeiramente inchados, mas deixara praticamente de ter as dores que me acompanhavam desde o segundo dia de caminhada, quando ainda tinha quinhentos quilómetros para percorrer num horizonte de montanhas. A sensação era a de que a qualquer momento poderia haver uma falência do corpo que me obrigaria a parar. Caminhava sobre uma insustentabilidade, num esgotamento físico progressivo, ao mesmo tempo que um desejo imperturbável de continuar parecia alimentar de energia um corpo-máquina que afastava um limite de possibilidades para um ponto mais distante. Era como um jogo sem regras que se vai definindo com o evoluir de uma narrativa indeterminada.
Colares, Sintra. 12 de maio de 2019 |
Havia algum contentamento por ter conseguido cumprir o objetivo de me debruçar sobre o oceano, fim e destino de tantas outras viagens. Estava preparado para relatar a história de um falhanço, de uma viagem imaginária que não conseguira terminar. Havia desde o início o desejo de construir um objeto de comunicação. Para esta ideia era mais ou menos indiferente terminar a viagem ou ficar pelo caminho. A viagem era uma linha, um conceito, um território de ninguém, que divide, grosso modo, um país em dois. E sobre um país que se procura poderia sempre dizer qualquer coisa, como uma viagem projetada num mapa, em que muitos dos locais por onde passaria já tinham sido por mim visitados ao longo dos últimos trinta anos.
Janas, prox., Sintra. 12 de maio de 2019 |
A fazer lembrar um pouco a passagem por Barca de Alva, no primeiro dia de caminhada, estava agora no meio de turistas, completamente indiferentes a tudo o mais. Estava aqui, como eles, no extremo continental mais ocidental da Europa. Era uma imersão na realidade, como se nada tivesse acontecido nas duas semanas anteriores. Era a segunda vez que me deparava com turistas, mas agora em muito maior número, talvez por ser domingo.
Pé da Serra, prox., Sintra. 12 de maio de 2019 |
Esta era também a imagem de um mundo global, pessoas juntas, pacificamente, sem qualquer contacto entre si, cada uma dentro de um pequeno grupo, a usufruírem do lugar, da situação, daquela singularidade geográfica. Era como se, durante duas semanas, tivesse percorrido a terra antiga, milenar, geológica, quase inacessível. Agora estava dentro de um tempo social, profundamente contemporâneo, alegre, aparentemente ausente, ali na "irrealidade" de um momento descolado do quotidiano da vida de cada pessoa.
Cabo da Roca, Sintra. 12 de maio de 2019 |
Este tempo "fora" não foi muito prolongado mas tocou em infinitos ocultos. Abriu portas de estranheza, de paisagens distantes, percorridas, porque não, há milhares de anos. Não tivera um tempo efetivo para me desligar do quotidiano, mas agora parecia solto desta realidade dos dias corridos. Navegava na margem de uma corrente a que não queria voltar, mas cujo campo magnético impedia de me afastar demasiado. Talvez apenas desejasse procurar novas palavras, que ainda não foram inventadas, como aquelas que pudessem falar do amor, do indizível, da barreira que tentamos quebrar em momentos que todas as palavras parecem poucas ou não se adequam.
Cabo da Roca, Sintra. 12 de maio de 2019 |
Agora ia finalmente poder tomar um duche, comer qualquer coisa quente, sentar-me e ler algumas notícias, pois nada soube do que se passara no mundo nestas duas últimas semanas. Ia poder dormir numa cama, lençóis brancos, uma almofada. Mas quando me defronto com estas possibilidades elas parecem ter perdido o carácter de algo que se deseja. Pontualmente ocuparam o meu pensamento durante a viagem, mas progressivamente foram deixando de ter um significado concreto.
Cabo da Roca, Sintra. 12 de maio de 2019 |
Estava de regresso aos dias corridos, a uma certa rotina. Para trás ficava uma experiência de vida sobre a qual se poderão agora sobrepor desenhos e palavras. É uma outra viagem, como que a invenção de uma condição urbana instável, sempre em procura do seu significado. A caminhada faz parte deste jogo, tentativa e erro, modo de usar uma existência racional. Querer habitar esse limbo entre a ciência, a arte e a poesia. Recusar os formatos que nos integrem numa determinada normalidade. Assumir o temor, remeter o medo para a beira do indizível. Dialogar com a solidão. Que o risco seja uma linha traçada sobre um mapa, que essa linha seja o fragmento de uma geometria maior. Que a abstração progressiva nos conduza à viagem interminável. De novo olhamos o céu estrelado nas noites das mais altas montanhas e, quando entrarmos no sono, a manhã seguinte será um oceano de possibilidades.
Dia: 2019/05/12
Lugar referência: Cabo da Roca
Pernoita: (Queluz)
Quilómetros percorridos: 27,8
Quilómetros acumulados: 530,1
Concelhos atravessados: Mafra; Sintra
Cartas militares: 402; 416; 415
Fotografia inicial: dg903410, 06h20
Fotografia final: dg903841, 15h46
Duração trabalho fotográfico: 9h26
Fotografias: 432
Somatório fotografias: 7058
Fotografias selecionadas: 88 (20,37%)
Belo texto e excelente final. O local do término é de um grande simbolismo. É por um lado um fim e por outro o início de qualquer coisa, mais global, mais civilizado. Enfim, uma margem perfeita em todas as dimensões.
ResponderEliminarAs palavras "Assumir o temor, remeter o medo para a beira do indizível" são aquelas que mais pressinto que sentiria - perdoem-me o pleonasmo - se realizasse uma só etapa da caminhada, quanto mais as 15(?) etapas. Creio que a coragem e determinação foram a chave do sucesso desta aventura. O que ficará para memória futura, está no teu pensamento e arte, caro Duarte.