sexta-feira, 14 de junho de 2019

5 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 10] A noite fora muito tranquila. O chão onde dormira acabou por se revelar confortável e acolhedor. De manhã não tive o habitual ritual de desmontar a tenda, embora a tenha estendido e dormido sobre ela. O começo do dia seria uma íngreme subida à serra da Lousã. Ainda antes do sol nascer, encontrei uma nascente que abastecia um tanque. Teria água para o dia inteiro, mas em racionamento acentuado. Agora aproveitei para encher uma garrafa e tomar um banho muito sumário. Estava no oitavo dia de viagem e já sentia a falta de molhar o corpo. Estava frio. Esta viagem era também essa provação de um bom duche matinal, ou a seguir a um esforço intenso. No correr destes dias, essa realidade “urbana” estava também ausente, como ler notícias para saber o que se passava no mundo. Era como estar numa fuga momentânea de tudo, de quase tudo, de uma condição quotidiana. Mais do que uma viagem pelo espaço e pelo tempo, como quem quer ir longe conhecer outras culturas, aqui estava numa viagem simples. Apenas de tudo me ausentava. Defrontava-me, não apenas com um ser despojado, mas também com um olhar diferente sobre as possibilidades de sermos humanos, criaturas racionais, conscientes da sua finitude. Habitar passageiro entre uma terra dura, jangada imensa sobre um oculto oceano de magma, e o infinito céu estrelado na noite escura.
 
Lomba da Cilha. Góis. 5 de maio de 2019
O recomeço da caminhada é feito pelo contorno sul da Serra do Penedo, uma elevação quartzítica que como que ampara a Serra da Lousã. Seguidamente subiria a esta última serra por um estradão que dá acesso às eólicas. Tal como no dia anterior, esta jornada seria praticamente toda ela feita na companhia destes monstros que captam o vento. Ao chegar ao aeródromo estou num dos pontos mais elevados da serra. Desço um pouco e deparo-me com o Santo António da Neve. Uma antiga sacralização do lugar significava um pacto com o desconhecido: a pacificação de tensões do espaço natural, a natureza dos flagelos, a meteorologia difícil. Era como fazer "cidade", abrigo, nos mais inacessíveis lugares, a conquista de uma posição e de um nome. Junto da capela há poços de gelo. Aqui era depositada neve que, mais tarde, seguiria para a corte, em Lisboa, nomeadamente para a preparação de sorvetes. Atualmente é raro nevar nestas paragens. Estes elementos são um bom indicativo de como o clima tem vindo a aquecer já desde o século XVIII. O aquecimento global é uma realidade que parece acentuar-se a cada ano que passa.
Serra da Lousã. Góis. 5 de maio de 2019

Não passei ao Castelo do Trevim, o vértice mais elevado da serra da Lousã, com 1205 metros de altitude. Parei não muito longe deste ponto, junto às ruínas de uma antiga Casa do Guarda Florestal. Corria um regato. Aproveitei para passar por água alguma roupa.
Santo António da Neve. Castanheira de Pera. 5 de maio de 2019

Prosseguia na interminável companhia das eólicas. Não seria esta uma forma de fazer “desaparecer” mais um pedaço muito significativo de um país? Talvez seja apenas a prova de que o território não é pensado como um todo, e pensar como um todo é também tornar consciente uma cultura, a construção milenar de uma identidade, com os seus aspetos positivos ou negativos. 
Casa do Guarda Florestal, prox., Castanheira de Pera. 5 de maio de 2019

Na travessia deste deserto convocado pelo vento volto a refletir sobre as pausas no caminhar. Tentava escolher sempre um lugar recatado, ligeiramente afastado do trilho ou estrada que seguia. Descalçava-me, deitava-me, se possível, em função do piso, de encontrar uma sombra, algum conforto. Por vezes dormitava, entrava numa ausência, num silêncio profundo, ainda que houvesse ruído ao redor. Relaxava, sentia o ar, alguma brisa ligeira, não pensava em nada. Se esta viagem era, em si, uma suspensão do quotidiano urbano dos meus dias normais, estes momentos de pausa breve eram um aprofundar dessa ausência, eram uma dupla partida. Desligar tudo, nada existia. Algo de primordial, antes do princípio, depois do tempo, sem corpo, sem pensamento. Nada que diga nada. Tinha muitos quilómetros pela frente, mas sabia que um dia, não muito distante, faria uma última pausa e depois daria por concluído este caminhar oblíquo. À noite raramente conseguia estes momentos de vazio. A escuridão fazia-se acompanhar de alguma inquietação. Eram momentos de fragilidade em que despia o uniforme de combate, em que me expunha à incerteza da escuridão. 
Serra da Lousã. Figueiró dos Vinhos/Miranda do Corvo. 5 de maio de 2019

As pausas eram também a descrição de toda a viagem condensada em nada, contraditória partida por um imenso movimento cósmico. Eram a negação de tudo, de toda a história humana, toda a história pessoal, todo o passado, nada como futuro. Vertigem absoluta, movimento de luz. Nuvens brancas atravessam, mutantes, o horizonte. 
Cabeço do Madeiro. Penela. 5 de maio de 2019

Estava guardado para o final do dia, o mais interessante troço de paisagem de toda a jornada: uma crista quartzítica em desmoronamento, como uma parede ciclópica em ruínas. O lugar era, no entanto, marcado por um incêndio relativamente recente, que estava muito presente nas árvores queimadas que permaneciam em pé. Havia ali inquietude. Enormes pedras brancas estavam dispostas pela encosta norte desta serra de São João. O sol já se encontrava baixo. Procuro um pequeno promontório para passar a noite. Estava parcialmente coberto de tojo e o piso era pedregoso e irregular. Havia também vestígios muito recentes de atividade humana. Uma linha de média tensão estava a ser instalada e este era um local de acesso a um dos postes metálicos. Desço e procuro outra solução. Um pouco à frente deixo a mochila e faço um giro para ver se encontro um pedaço de solo com cerca de dois metros quadrados, horizontais, para montar a tenda. Nada. Muitas pedras num solo duro. Irei passar a noite ao relento perto de um conjunto de colmeias. Desenrolo a tenda, sobre ela disponho o colchão e depois os sacos-cama. Como um pão com queijo e uma maçã. A humidade, quase impercetível, faz-se sentir. Nuvens baixas aproximam-se de poente. Cobrem as cumieiras a algumas centenas de metros do local em que me encontro. Cubro-me com o duplo-teto da tenda. Aconchego-me. Quando de noite ocasionalmente acordo uma primeira vez, há um nevoeiro rosáceo a cobrir toda a paisagem. O vento aumentara. O clima estava a mudar e transmitia uma sensação de insegurança, instabilidade. Voltei-me. Adormeci de novo num sono entrecortado. De manhã já não havia nevoeiro mas o dia clareava sombrio. Já praticamente não tinha nada que comer.

Serra de São João. Figueiró dos Vinhos. 5 de maio de 2019


Dia: 2019/05/05, domingo
Lugar referência: Serra da Lousã
Pernoita: Serra de São João
Quilómetros percorridos: 33,8
Quilómetros acumulados: 271,4
Concelhos atravessados: Góis; Castanheira de Pera; Lousã; Figueiró dos Vinhos; Miranda do Corvo; Penela
Cartas militares: 253; 252; 264
Fotografia inicial: dg900015, 06h13
Fotografia final: dg900507, 20h32
Duração trabalho fotográfico: 14h19
Fotografias: 493
Somatório fotografias: 3724
Fotografias selecionadas: 89 (18,05%)

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