[Caminhar oblíquo 12] Chove. A previsão a que tivera acesso em Avelar confirma-se. Deveria ter chuva durante os próximos três dias. Retomo o caminhar sobre um estradão de terra. Mais à frente encontro o asfalto. Prossigo sem saber com precisão o local em que me encontrava. A cartografia que tenho comigo não está atualizada e em zonas de floresta, por vezes, os caminhos não coincidem, houve alterações dos talhões plantados. Chego a uma povoação e tenho a sorte de encontrar uma senhora. Pergunto-lhe onde estou. Cumeada é a sua resposta. Estava ligeiramente desviado do itinerário traçado, mas nada de muito significativo. Continuei a caminhar à chuva pelas monótonas paisagens do Pinhal Central, que em muitos casos era agora eucaliptal.
Alto da Cascalheira, Ourém/Pombal. 7 de maio de 2019 |
Já vinha a ouvir o ronco de motores há largas centenas de metros. De repente encontro a fonte do ruído. Um camião TIR, várias viaturas ligeiras, um ou dois carros de competição, de ralis, creio, de provas tipo “Paris-Dakar”. A propósito do pedido de informações sobre a direção que eu procurava, meto conversa com pessoas que ali se encontravam. Quase ninguém conhece aqueles lugares. A pergunta passa de uns para outros. Finalmente alguém me sabe responder. Ficámos um pouco na conversa. O que se passava ali era divertimento. Um conhecido treinador de futebol, que não cheguei a ver, ia testar um automóvel naqueles estradões, a grande velocidade. A viatura era uma espécie de nave espacial, muito ruidosa. Apressei o passo, afastei-me. Prossegui o meu caminho.
Urqueira, prox., Ourém. 7 de maio de 2019 |
O dia foi difícil. Para evitar perder-me entre pinheiros e eucaliptos, caminhei quase sempre por estradas. Passei a Urqueira, depois a Aldeia Nova, no concelho de Ourém. Segui, posteriormente, entre algumas hesitações e a chuva persistente, para Santa Catarina da Serra. Continuei para Loureira. O objetivo era seguir para São Mamede, mas mais uma vez opto por fazer uma alteração ao itinerário planeado.
Cova da Iria, Fátima, Ourém. 7 de maio de 2019 |
Em aproximação a Fátima, onde não estava previsto passar, parece acentuar-se o Portugal da estranheza, das intervenções na paisagem mais díspares, mais contraditórias, como que a falarem-nos de um mundo de perda. Perda das referências tradicionais da construção, da agricultura tradicional que se abandona para a indústria dos eucaliptos, ao mesmo tempo que não há referências comuns de urbanidade, que ajudem à construção de uma imagem coerente, coesa, equilibrada deste chão comum.
Cumeada, prox., Ourém. 7 de maio de 2019 |
O desistir nunca foi uma opção durante o caminho. Era uma ideia recorrente, diária, mas não, nunca estive perto de abreviar este tempo. À passagem por Fátima, pela rotunda norte, estaria a cerca de 500 metros do terminal rodoviário. Aqui teria transporte para Viseu ou para Lisboa. Em cerca de duas horas estaria em casa. Segui na direção de São Mamede. A passagem por Fátima nem estava prevista no meu itinerário inicial. Mas a cartografia que tinha era antiga, a autoestrada A1 existia ainda. Pelo meu desenho, depois de Santa Catarina da Serra, passaria a Loureira e daqui seguiria por caminhos rurais até São Mamede. Em Loureira perguntei a um senhor de idade se havia caminho pelo eucaliptal até São Mamede. Sim, que havia, mas que o melhor seria conhecer esse caminho, pois não era retilíneo, havia algumas voltas menos óbvias, que me perderia com facilidade. Decido então seguir a estrada em relação à rotunda norte, que distava dali cerca de 3 quilómetros.
Loureira, Leiria. 7 de maio de 2019 |
Estes são alguns dos aspetos que falharam na viagem, mas pouca coisa, de facto, falhou que não sejam estas pequenas alterações de itinerário. A cartografia desatualizada não ajudou, tinha feito falta fazer uma análise de todo o itinerário em imagem de satélite. Mas os últimos dias, antes da partida, precipitaram-se e não tive disponibilidade. A forma mais segura de preparar tudo isto seria o reconhecimento, no terreno, de carro, das etapas mais sensíveis. Mas nunca equacionei esta possibilidade, até pelo carácter da viagem, o desenho “pobre”, os poucos meios com que a fiz. Uma aproximação ao "vazio" como conceito. Uma das vantagens do caminhar solitário é esta, o sermos responsáveis apenas por nós próprios, não levarmos ninguém ao sofrimento, a uma dureza excessiva, como que gratuita, ou de sentido duvidoso, para quem tem outras opções. De qualquer modo a dureza e o sofrimento nunca foram uma opção de partida. Aconteceram aqui, sim, por falta de preparação. Mas tudo se passou com naturalidade, sem qualquer questionar de transcendência. Uma viagem como uma vida, com alegrias e contrariedades no correr dos dias.
Barrocaria, Ourém. 7 de maio de 2019 |
Nas povoações ocasionalmente reparo em casas modestas em que tudo parece normal, estão em bom estado, com algumas marcas do tempo na pintura, eventualmente. As cortinas nas janelas parecem indicar que o espaço é habitado. O crescimento de vegetação à frente da porta de entrada diz-nos que aquele acesso não é pisado há algum tempo. Há um silêncio visual ali. Alguém terá saído e nunca mais voltara. Como se uma vela permanecesse acesa indeterminadamente.
Urqueira, prox., Ourém. 7 de maio de 2019 |
Quando estamos muito tempo sozinhos, ou, mesmo não sendo muito tempo, mas um período de intensa solidão, dias longos que nos inscrevem memórias fortes, começamos a sentir algum descolamento de modos de vida com os quais vamos quebrando laços. A aparente solidão afinal é apenas uma vida diferente. Um mundo de referências diferente, de códigos indiciais singulares. É como estarmos ausentes, quando estamos com amigos e a conversa segue fluída. Aqui, no campo, temos algo que não podemos partilhar. Tivemos, ou vivemos, uma experiência de vida limite. Este uso do corpo no extremo da exaustão, as noites brancas, as dores, os poucos contactos com pessoas, a dureza de alguns troços do percurso, a luta estúpida e determinada por atingir um ponto imaginário, tudo me transportava ao recolhimento. Depois viria esse desejo de verter a vivência dos dias caminhantes em palavras. Mas não era o relato de uma viagem, não poderia ser literatura de viagem, apenas por manifesta incapacidade para o fazer, era a experiência da escrita deste território de passagem, como que com o espaço descrever o tempo, numa equação impossível. Os limites da comunicação eram, aliás, uma barreira que queria ultrapassar, mesmo não tendo ferramentas para esse rompimento. Que "tudo" podemos dizer com as palavras? Ou, como poderemos entretecer palavras com mapas, com desenhos, com fotografias, de modo a que cada elemento perca o seu próprio modo de leitura, individual, e todos se fundam numa mensagem, numa experiência contínua, sem quebras, como o foi a própria viagem? Como poderemos transportar alguém connosco, aqui, sem que saibamos, sequer, quem é esse alguém? Movimento de abstração progressiva em que as coisas, quaisquer e todas, deixem de ter nomes, se afastem de toda a representação. É esta a impossível viagem desejada. Anular uma condição de presente, de "aqui", de "agora".
Cumeada, prox., Ourém. 7 de maio de 2019 |
A noite cai. Procuro um local para dormir. Entro por um eucaliptal à beira da estrada. Está tudo molhado, mas a chuva havia parado no fim do dia. Preparo um leito de fetos apanhados na imediação do local onde decido montar a tenda. É a forma de ter uma "cama" um pouco mais confortável.
Dia: 2019/05/07, terça-feira
Lugar referência: Urqueira
Pernoita: São Mamede, Batalha
Quilómetros percorridos: 40,3
Quilómetros acumulados: 352,1
Concelhos atravessados: Ourém; Pombal; Leiria; Batalha
Cartas militares: 287; 286; 298; 309; 308
Fotografia inicial: dg901035, 06h41
Fotografia final: dg901466, 20h05
Duração trabalho fotográfico: 13h24
Fotografias: 432
Somatório fotografias: 4683
Fotografias selecionadas: 128 (29,63%)
Antes mais obrigado pela descrição de mais uma etapa. Partir para uma viagem sem que tudo esteja planeado exaustivamente parece um dos ingredientes de uma viagem verdadeira. O hábito do acaso, a mim, dá-me um certo prazer. E normalmente é esse acaso que traz consigo as minhas histórias, as descobertas interiores ou exteriores. Gostei muito da passagem em que falas da impossibilidade de transmitir o absoluto da experiência até ao leitor. A impossibilidade terá obviamente diversos fatores - um deles é não haver um único leitor-tipo, mas muitos e variados. Talvez a descrição de detalhes esporádicos e pontuais possam levar o leitor a conhecer, ou melhor, a interpretar aquilo que foi vivido. Parece-me que a percepção do contexto acontece dos detalhes para o todo. A viagem do leitor será sempre outra - essa a riqueza da comunicação escrita, passo a citar:" mesmo, as coisas, quaisquer e todas, deixem de ter nomes, se afastem de toda a representação".
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