quarta-feira, 31 de julho de 2019

Para lá de Amarante

[regressar onde 02] No dia 26 de dezembro de 1993 partia de Vila do Conde em direção a Amarante. Nessa cidade faria a primeira paragem. Daí seguiria para o Douro para depois, pelas suas margens, numa sucessão de pontos que tinha anotados de um itinerário desenhado a partir do Guia de Portugal, de Raúl Proença e Santana Dionísio, percorrer o rio para montante. Depois das longas caminhadas pedestres dos anos anteriores, que coincidiram com o habitar a cidade do Porto como estudante, estava no início das viagens em automóvel por Portugal, e a fotografar o seu território com uma minúcia progressivamente maior. Dois dias depois, a 28, atravessava a foz do rio Côa e daí tomava caminho para Castelo Melhor, Almendra, com destino ao planalto de Miranda, a norte. Fora esta a primeira vez que atravessava este território de Foz Côa, uma região marcada por um intenso caráter telúrico, expresso numa paisagem onde subsistem formas tradicionais de trabalhar a terra e onde há uma série de vestígios arqueológicos que nos remetem para tempos muito recuados do povoamento daqueles lugares.

dc156-01 - São Gabriel, Vila Nova de Foz Côa. 1996

terça-feira, 30 de julho de 2019

Regressar onde

[regressar onde 01] Em março passado inaugurou uma exposição no Museu do Côa, evocativa da luta travada em defesa das gravuras rupestres. Dessa exposição resultou um livro/catálogo organizado por Ana Pessoa Mesquita, numa edição Fundação Coa Parque/Documenta. Escrevi na altura um texto, Regressar Onde, e cedi algumas fotografias, que agora vou partilhar neste espaço.

Tributo às Gravuras do Vale do Rio Côa, Ana Pessoa Mesquita (Org.). Fundação Coa Parque/Documenta. 2019

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Castelo Branco, Cultura

Recentemente tive a oportunidade de participar num evento denominado Água Mole em Pedra Dura, realizado em São Vicente da Beira, uma freguesia do concelho de Castelo Branco. Durante o fim de semana de 22 e 23 de junho, uma programação variada ocupou a praça principal da vila com música, teatro, leitura de contos, exposições. 
Já há cerca de três anos eu tinha sido desafiado a trabalhar sobre uma área muito periférica do concelho de Castelo Branco, num "istmo" administrativo que coloca a aldeia de Lisga mais perto de Oleiros ou Proença-a-Nova do que a própria sede de concelho. São paisagens que, como tantas outras áreas do Portugal "interior", estão em processo de perda populacional. 
O que Castelo Branco tem vindo a fazer, de forma continuada, sustentada e coerente, é o levar a cultura às suas mais distantes freguesias e a lugares dessas freguesias. A esta atitude se pode chamar, verdadeiramente, descentralização e um grande estímulo à coesão territorial do concelho, que, neste caso concreto tem uma área geográfica muito extensa. 
O que acontece em Castelo Branco é uma valorização das pessoas, é o ir ter com elas, sabendo que há uma camada da população que nunca se deslocará à cidade para ir ver um espetáculo cultural. Este é um dos mais generosos gestos de humanidade que podemos ter para com estas pessoas. É o dizermos-lhes que elas contam, que não são apenas eleitores, que são seres humanos.
Esta é uma luta contra várias correntes. A primeira é o de se pensar que determinadas populações isoladas e pouco numerosas não merecem a nossa atenção, uma segunda corrente é a luta contra o elitismo da cultura que só se deverá desenvolver em espaços “próprios”, para um determinado extrato social.
Uma das experiências mais marcantes que tive no meu percurso profissional foi justamente aqui, no concelho de Castelo Branco, quando fui fazer uma apresentação de fotografias da Lisga. Uma exposição sobre o território da Lisga tinha inaugurado no salão da Junta de Freguesia de Sarzedas e foi-me pedido que fizesse uma apresentação oral, na aldeia, que ainda dista mais de uma dezena de quilómetros de Sarzedas. Apresentei o trabalho, com imagens projetadas, a pessoas de idade que toda a vida ali trabalharam em atividades ligadas à agricultura que, muito provavelmente nunca tinham visto uma exposição de fotografia. Estariam na sala, talvez umas doze pessoas, que iam reagindo espontaneamente às imagens de lugares que tão bem conheciam. 
Encontrava na Lisga, naquela apresentação, tudo o que procuro no meu trabalho: estimular a identificação das pessoas com a terra, valorizar o território, promover o património, mostrar o enorme valor que existe nesta relação que, humanos, estabelecemos com as paisagens, tentar apontar caminhos, pelo exemplo de determinadas situações de arquitetura e de paisagem, para a qualificação dos espaços que habitamos.
Castelo Branco dá-nos a defesa da coesão territorial através da cultura, um exemplo que poderia ser seguido por outros municípios e, sobretudo, por políticas de descentralização efetivas levadas a cabo pelo governo da nação.
Deixo um bem haja a Castelo Branco e um agradecimento muito especial a Carlos Semedo e Carlos Matos pela qualidade do trabalho que desenvolvem e pela indomável determinação na defesa e valorização da terra e das pessoas que a habitam.

Água Mole em Pedra Dura, Sarzedas, Castelo Branco. 22 de junho de 2019. (Fotografia de Carlos Matos)

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Viseu: para lá de uma fronteira

[Limite-Viseu 08] Ao longo de várias décadas, Fernando Ruas, o anterior presidente da Câmara Municipal de Viseu, modernizou o concelho e a cidade. Infraestruturou o espaço rural e conseguiu conter um desenvolvimento urbano excessivamente desregrado, como podemos observar em tantas outras cidades portuguesas de média dimensão. Fernando Ruas resgatou o concelho da enorme pobreza que vinha do regime político anterior, foi esta a sua maior conquista, foi a resposta a uma urgência.
Os tempos hoje são diferentes. As obras estão, generalizadamente, feitas. Não é necessário muito mais betão. Talvez fosse tempo de investir numa maior qualificação das populações. A escolaridade obrigatória é fundamental mas claramente insuficiente para o desenvolvimento de uma sociedade informada, exigente e livre. O investimento público na Cultura será, creio, uma das melhores formas de promover a elevação do nível de conhecimento das populações, tornando-as muito mais aptas para enfrentarem os enormes desafios que se avizinham que decorrem das alterações climáticas ou de uma geoestratégia global em profunda mutação que terá consequências sobre todos nós. Exige-se a quem decide, a quem gere organismos públicos, que promova o conhecimento, a ciência, a cultura, a arte, pois todas estas formas de saber estão estritamente ligadas.
Não consigo identificar qualquer estratégia política consistente nesta governação autárquica de Viseu e, verdade seja dita, em termos de oposição, o que observamos é desorientação. O que parece atualmente visível é que há uma cidade que absorve uma quantidade muito significativa de recursos e deixa o espaço rural do concelho sem os cuidados necessários. No fundo, como já foi aqui sinalizado anteriormente, o modelo político seguido é exatamente aquele que há séculos emana do Terreiro do Paço - um centralismo excessivo. A consequência desta situação é a evidência de um território que perde população há várias décadas. A grande marca desta administração autárquica parece mesmo ser o marketing, mais especificamente, o marketing territorial. Mas o marketing é apenas um veículo, uma mensagem. Essa mensagem tem que estar agarrada a alguma coisa. Essa “coisa”, em Viseu, é nada, é o vazio.
Viseu tem algumas particularidade que poderiam fazer da cidade um símbolo do combate por um país diferente, o país do desenvolvimento regional, da inclusão, do valor desta relação próxima entre uma cidade urbanisticamente equilibrada e o mundo rural que a envolve. A divisão territorial em distritos não tem, hoje em dia, praticamente utilidade, mas ela vigorou até há pouco tempo. Esta divisão dava-nos um indicador muito interessante: o Distrito de Viseu era o único, em todo o país, que não tinha como limite o oceano Atlântico nem fazia fronteira com Espanha, era o único distrito “envolvido” apenas por outras terras portuguesas. Viseu poderia ser um símbolo da interioridade também por estar rodeado, e em proximidade, de paisagens de grande diversidade geográfica. Viseu podia assumir esta diferença como uma enorme mais valia de desenvolvimento sustentado, para uma nova visão do espaço interior de Portugal.
Não tenho soluções, estratégias, para a resolução dos problemas da fixação de populações no interior. O desenvolvimento económico é fundamental para a atratividade de pessoas. Apenas pressinto que, sem o conhecimento detalhado da terra, nunca conseguiremos dar o salto para a inversão da situação. E a terra não se conhece apenas com mapas, imagens de satélite, ou folhas de cálculo. É necessário caminhar sobre ela, identificar os seus mais antigos trilhos, observar as correntes dos rios do inverno, ou a permanência das árvores nos mais quentes estios. Ler a arquitetura de quem nos ergueu como civilização. Subir às montanhas e saber descodificar as mais longínquas paisagens e ter o desejo de lhes chegar, o desejo de compreender o mundo que habitamos nas suas mais simples, e simultaneamente, mais complexas dimensões.
O conhecimento da terra poderá ainda transportar-nos a um modelo económico diferente, que interiorize a proximidade ao solo, ao seu valor como memória sobre o fascinante percurso que fizemos até ao presente, agora que parece estarmos a ameaçar o nosso próprio planeta. [Esta é a última publicação desta série, relativa a Viseu e o seu concelho].
Viseu. 2019

domingo, 7 de julho de 2019

Viseu: quais os limites de uma cidade?

[Limite-Viseu 07] Vila Chã do Monte parece querer subir ao Caramulo, Quintãs, com a sua arquitetura de granito e xisto, transporta-nos para paisagens vizinhas, Povoação guarda memórias de uma ruralidade a desaparecer, Loureiro de Silgueiros é um aglomerado de pequenos lugares próximos. Viseu está no centro de um concelho que apresenta formas muito diferenciadas de povoamento, de relação com a terra. Quando viajamos por Viseu, e por algumas das dezenas de aldeias que a circundam, verificamos que há uma urbe que quer ser cosmopolita, mas que se ergue de uma ruralidade em perda. Como poderemos olhar estes territórios absorvidos por contradições?
 
Quintãs, Côta, Viseu. 2019

Quintãs, Côta, Viseu. 2019

Forniçô, São Pedro de France, Viseu. 2019

Povoação, Povolide, Viseu. 2019

Lajes, Loureiro de Silgueiros, Viseu. 2019

Vila Chã do Monte, Boa Aldeia, Viseu. 2019
 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

As margens de um rio

[Limite-Viseu 06] Na pausa de um quotidiano difícil, procuro as margens de um rio. Ouvir a água do inverno a correr como se pudesse absorver a sua imensa e contínua força. Água que tudo lava, que tudo leva. Não tardará que o estio se levante em secura tórrida. Nestes esconderijos nos protegemos dos momentos urbanos. Aqui inventamos o futuro, pois nestas pedras vegetais ele se esconderá. Continuemos a caminhar, à procura de um lugar que pacifique as tensões dos inconciliáveis. Que frio nos devolva o simples sublime.
 
Fradega, Bodiosa Velha, Bodiosa, Viseu. 1 de fevereiro de 2019 (todas as fotografias)




terça-feira, 2 de julho de 2019

Os Jardins Efémeros

[Limite-Viseu 05] Os Jardins Efémeros, uma criação de Sandra Oliveira, foram um acontecimento que marcaram os últimos 8 anos do início do verão em Viseu. Este ano não vão acontecer. Há qualquer coisa que mudou nesta cidade que habito. Os Jardins Efémeros são um símbolo, pelo próprio conceito de reflexão sobre a Natureza, sempre com formas diferentes, pelo “plantar” de várias espécies vegetais na praça Dom Duarte, onde não há praticamente nada vegetal. A par desta reflexão fundamental sobre a Natureza, nem sempre compreendida, havia uma programação de vários eventos de artes visuais e performativas, com a capacidade de convocar o estranho e o desafiador, que traziam uma aragem nova à cidade. Durante dez dias os Jardins Efémeros eram os ventos de mudança no coração de uma cidade.
Uma das grandes virtudes dos Jardins Efémeros é as polémicas que gera. Esta afirmação pode parecer contraditória mas, se observarmos a realidade, poderemos constatar o valor destas polémicas. São polémicas que põem as ideias no centro do debate. De forma muito viva, são confrontadas diferentes conceções de arte, de cultura, de sociedade, de cidade, de mundo. É esta reflexão coletiva, expressa por vezes de forma exacerbada, que faz crescer uma cidade e que a prepara para o futuro.
Os Jardins Efémeros têm essa capacidade de trazer gente de fora, de cidades vizinhas, de todo o país e de geografias mais distantes, justamente para ver e ouvir o inusitado, o surpreendente, num lugar em que, tradicionalmente, não é usual estas coisas acontecerem. Uma programação singular não é "elitista", um termo caro ao discurso do poder em Viseu, aplicado a tudo o que não é imediatamente popular. Com este tipo de atitude e desejo de inclusão, o que se está a fazer é, de facto, promover a exclusão, matar a diferença e afastar da cidade as vanguardas criativas e livres. Numa economia deprimida, que é extensível praticamente a todo o Portugal, eu diria que certas expressões do pensamento deveriam ser acarinhadas pelos poderes políticos, pelo financiamento público, independentemente dos gostos pessoais de um presidente de câmara municipal ou de qualquer dos seus vereadores.
Os eleitos em processos democráticos deveriam rodear-se, não apenas de fiéis e subservientes amigos, mas de quem, com o seu trabalho, tenha revelado competência, consistência e determinação. Alguém que tenha mérito e que não seja por isso castigado, independentemente de personalidades mais difíceis ou de inevitáveis diálogos acicatados. A política, que deveria ter como base projetos de sociedade sólidos, claros e transparentes, é também a gestão de sensibilidades. 
A democracia tem que ser inclusiva, aceitar o outro, aceitar quem tem vontade de mudança, mesmo que essas propostas não sejam imediatamente entendidas. É com estímulos fortes que, em campo aberto, se deve lutar por aquilo em que se acredita, e que seja o bem estar de todos. A República não pode aceitar o conformismo, tem que saber lidar com o erro, estimular o diálogo entre diferentes leituras da sociedade e da vida, sem populismos, entender que o conhecimento é uma das mais poderosas ferramentas para enfrentar os tempos vindouros, que não se avizinham fáceis.

Viseu. 2019

Viseu, que museu?

[Limite-Viseu 04] Entramos no Museu de História da Cidade, na rua Direita, em Viseu. Há um texto introdutório que nos chama a atenção: (...) “Este é o prelúdio do futuro museu da cidade e, como todos sabemos, não existe nada na vida mais importante do que os preliminares”. A referência aos "preliminares", uma expressão que se convenciona ser o início do ato sexual, é infeliz no contexto de uma exposição que deverá ter como fundamento a transmissão de informação objetiva. Está dado o mote para o que iremos ver a seguir, que é de uma confrangedora pobreza, falta de rigor, ignorância e mesmo de veiculação de conceitos errados. 
Apenas três exemplos. Comecemos por um título que refere “O fascínio dos Mitos”. São-nos apresentadas quatro personalidades. Três delas (Viriato, Rodrigo, Ramiro II) são verídicas, são pessoas que existiram, de que há registos documentais. Uma quarta personalidade, João Torto, nunca existiu, é uma ficção. Nenhum dos exemplos apresentado é um mito. Se continuarmos a ler os títulos atribuídos a cada sala (“O Charme de um Mistério”, “O Sopro das Ninfas”, “Uma História d’Ouro”...) continuaremos a constatar o desajuste da linguagem utilizada e a falta de respeito intelectual pelos visitantes, sejam as crianças das escolas do concelho, sejam visitantes nacionais ou turistas estrangeiros. 
Um segundo exemplo. Relativamente à presença romana no espaço que é hoje a cidade, é-nos apresentado um desenho de grandes dimensões. Não nos é dada nenhuma fundamentação em relação à cidade representada. A localização, por sobreposição gráfica, por exemplo, da cidade atual, permitiria fazer uma comparação com o modelo proposto e dar alguma verossimilhança a esta representação. Mas nada disto é feito. Este desenho nada diz, é um puro exercício especulativo que nunca deveria ser exibido no museu de uma cidade. 
Um terceiro exemplo. Numa outra sala (“Guerra do Tronos”) vemos a Carta de Foral, outorgada por D. Teresa em 1123. Não é necessário um olhar atento, nem especialista, para perceber que o documento mostrado não passa de uma fotocópia de má qualidade. Na tabela que identifica a Carta de Foral, não havendo o cuidado de referir que estamos perante uma réplica, é assumido que se trata de um original, ideia que é reforçada pelo aparatoso paralelepípedo em vidro que garante a segurança de tão preciosa peça. 
A entidade promotora, a Câmara Municipal, talvez devesse delegar numa comissão científica independente o projeto museológico. Mas não existe qualquer comissão e o projeto referido é de museografia. Ao invés, a coordenação geral é assumida pelo vereador do Património, Cultura e Ciência, Turismo e Marketing Territorial
No fim de uma visita ao Museu da Cidade não posso deixar de me questionar: com que ideia da cidade de Viseu, ao longo do tempo, é que um visitante pode sair do interior daquele espaço?
Tenho alguma dificuldade em considerar um museu àquilo que é apresentado como tal pela Câmara Municipal de Viseu no edifício que antes fora a Casa das Memórias e, num passado um pouco mais recuado, a Papelaria Dias, que nunca cheguei a conhecer como tal.
A preocupação com a comunicação, com conteúdos que se supõe serem acessíveis a todos, leva a uma proposta vazia. A quase ausência de peças que ilustrem a história da cidade, também contribui para uma ideia de vazio. Os textos são de uma ligeireza difícil de qualificar, sem qualquer objetivo de transmitir factos fundamentados. As imagens, sejam elas desenhos, pintura, fotografias, peças de cartografia são também quase inexistentes. É um espaço que faz referência a várias personagens de tempos diferentes, mas mesmo estas são apresentadas sem a densidade que as caracteriza. São apenas nomes associados a períodos históricos, sobre os quais também muito pouco é dito. Por outro lado parece que a “cidade” se limita aos seus espaços mais antigos, que não tem relações com a terra que a sustenta e a justifica, com o contexto geográfico. A cidade contemporânea é uma inexistência o que não se compreende, pois Viseu é a mais equilibrada, em termos de desenvolvimento urbano recente, de todas as cidades de Portugal.
O Museu de História da Cidade é uma peça de entretenimento. Mais parece um exercício de comunicação de design, em paredes pretas com letras redondas e amarelas. Estamos perante um espaço de propaganda a fazer lembrar os tempos áureos do Estado Novo, a exposição do Mundo Português, de 1940, há quase 80 anos. 
Este "museu" é bem um espelho do rumo da administração da cidade, no afunilamento progressivo das ideias. Um espaço museológico deverá ter várias camadas de conhecimento, servir diferentes públicos, não esconder a evolução, nem sempre clara e linear, de um organismo urbano com mais de dois mil anos de história. A representação da cidade de Viseu não se pode resumir a algumas ideias excessivamente simples, redutoras e pobres, deixando de fora a beleza intrínseca das tensões que sempre fizeram, inevitavelmente, parte do seu ADN. Muito do fascínio da cultura, dos fazeres humanos, está nas suas contradições. Quando, deliberadamente, queremos fazer simples o que é belo e complexo, estaremos, mais uma vez a falhar na construção de uma sociedade informada, exigente e livre.

Viseu. 2019

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A Cultura em Viseu

[Limite-Viseu 03] A Cultura é, atualmente, uma das mais poderosas forças criativas e regeneradoras de uma cidade, bem como uma forte marca distintiva de uma comunidade. É como uma janela sobre o futuro de uma população que quer inovar e se quer afirmar na sua singularidade. 
A Câmara Municipal promove anualmente o concurso Viseu Cultura. Aparentemente é uma iniciativa salutar que visa estimular a qualificação do setor cultural da cidade. O concurso não tem um júri. Tem uma comissão que é nomeada pelo vereador do Património, Cultura e Ciência, Turismo e Marketing Territorial, a que ele próprio preside. Paralelamente ao concurso há um conjunto alargado de iniciativas que são diretamente promovidas pela autarquia através de adjudicações diretas, ou por via da Associação Viseu Marca, financiada pela Câmara Municipal. Muitas destas iniciativas são assumidas e assinadas pelo próprio vereador, como coordenador geral. A propalada transparência, que é veiculada pelos canais de comunicação da Câmara Municipal será, afinal, bastante opaca. As consequências desta acumulação de todas as decisões da programação cultural em Viseu numa única pessoa tem uma óbvia consequência: o empobrecimento progressivo da criatividade e da dinâmica de um setor que é fundamental ao desenvolvimento da cidade.
A viciação desta situação vai ao ponto de, atualmente, se saber à partida, com alguma segurança, quais são as propostas que poderão ter financiamento cultural. Serão aquelas que se encaixam na estratégia de marketing que é seguida pela Câmara Municipal. Esta é uma das consequências da ausência de um júri independente para um concurso que servirá interesses programáticos muito próprios e direcionados. Não haverá uma agenda bem delineada de domínio de um setor que, tradicionalmente, é oposição ao governo, seja ele da nação, seja ele camarário? Em Viseu assistimos a um modelo de uso de dinheiros públicos que parece querer silenciar a comunidade criativa, que vive aprisionada na esperança de ver o seu trabalho financiado num próximo concurso. 
Há uma ideia de marketing, de trabalhos que possam ter um cunho de maior visibilidade para o exterior de forma muito imediata, fácil e direta. Não há inovação ou ousadia. Propostas que caiam fora dessa agenda, terão a grande probabilidade de serem rejeitadas. Quem desenvolver um pensamento próprio e tiver ideias diferentes sobre o melhor, no seu entender, para a cidade e para o território, terá a grande probabilidade de ser excluído do financiamento camarário. Numa cidade economicamente deprimida não há, praticamente, outras alternativas. Esta é uma forma de adormecer, ou mesmo matar, a criatividade de uma urbe, é um modo de conduzir a um beco sem saída uma sociedade, é o fechar de olhos ao correr dos tempos. Este parece ser o modelo herdado de tempos em que a democracia se lutava na clandestinidade, porque acreditava que o futuro não podia deixar de ter inscrita a palavra liberdade. Que não voltemos aos tempos da opressão velada ou explícita, ao amordaçar das vozes inconformadas, do direito a querer erguer, da terra que habitamos, a arquitetura de uma sociedade justa, para todos. 
A cultura tem que ser livre, disruptiva. O poder político não pode matar a diferença, pois isso significa também matar a democracia, amputar a República. No caso concreto de Viseu, aquilo que podemos assistir é suicidário. Uma cidade que não promove o pensamento e a diversidade é uma cidade que ficará para trás na feroz competição entre espaços urbanos que sejam administrados com mais abertura e inteligência. Este pode ser também um bom caminho para a desertificação humana, não só de pessoas altamente qualificadas, que só conseguirão trabalho em cidades que as saibam acolher. Há uma população que não quer viver numa cidade de ilusões que mais se assemelha ao cenário de um filme que apregoa o falso. Há um marketing erguido do vazio e um poder que talvez não o saiba ser.

Viseu. 2019