[Limite-Viseu 04] Entramos no Museu de História da Cidade, na rua Direita, em Viseu. Há um texto introdutório que nos chama a atenção: (...) “Este é o prelúdio do futuro museu da cidade e, como todos sabemos, não existe nada na vida mais importante do que os preliminares”. A referência aos "preliminares", uma expressão que se convenciona ser o início do ato sexual, é infeliz no contexto de uma exposição que deverá ter como fundamento a transmissão de informação objetiva. Está dado o mote para o que iremos ver a seguir, que é de uma confrangedora pobreza, falta de rigor, ignorância e mesmo de veiculação de conceitos errados.
Apenas três exemplos. Comecemos por um título que refere “O fascínio dos Mitos”. São-nos apresentadas quatro personalidades. Três delas (Viriato, Rodrigo, Ramiro II) são verídicas, são pessoas que existiram, de que há registos documentais. Uma quarta personalidade, João Torto, nunca existiu, é uma ficção. Nenhum dos exemplos apresentado é um mito. Se continuarmos a ler os títulos atribuídos a cada sala (“O Charme de um Mistério”, “O Sopro das Ninfas”, “Uma História d’Ouro”...) continuaremos a constatar o desajuste da linguagem utilizada e a falta de respeito intelectual pelos visitantes, sejam as crianças das escolas do concelho, sejam visitantes nacionais ou turistas estrangeiros.
Um segundo exemplo. Relativamente à presença romana no espaço que é hoje a cidade, é-nos apresentado um desenho de grandes dimensões. Não nos é dada nenhuma fundamentação em relação à cidade representada. A localização, por sobreposição gráfica, por exemplo, da cidade atual, permitiria fazer uma comparação com o modelo proposto e dar alguma verossimilhança a esta representação. Mas nada disto é feito. Este desenho nada diz, é um puro exercício especulativo que nunca deveria ser exibido no museu de uma cidade.
Um terceiro exemplo. Numa outra sala (“Guerra do Tronos”) vemos a Carta de Foral, outorgada por D. Teresa em 1123. Não é necessário um olhar atento, nem especialista, para perceber que o documento mostrado não passa de uma fotocópia de má qualidade. Na tabela que identifica a Carta de Foral, não havendo o cuidado de referir que estamos perante uma réplica, é assumido que se trata de um original, ideia que é reforçada pelo aparatoso paralelepípedo em vidro que garante a segurança de tão preciosa peça.
A entidade promotora, a Câmara Municipal, talvez devesse delegar numa comissão científica independente o projeto museológico. Mas não existe qualquer comissão e o projeto referido é de museografia. Ao invés, a coordenação geral é assumida pelo vereador do Património, Cultura e Ciência, Turismo e Marketing Territorial.
No fim de uma visita ao Museu da Cidade não posso deixar de me questionar: com que ideia da cidade de Viseu, ao longo do tempo, é que um visitante pode sair do interior daquele espaço?
Tenho alguma dificuldade em considerar um museu àquilo que é apresentado como tal pela Câmara Municipal de Viseu no edifício que antes fora a Casa das Memórias e, num passado um pouco mais recuado, a Papelaria Dias, que nunca cheguei a conhecer como tal.
A preocupação com a comunicação, com conteúdos que se supõe serem acessíveis a todos, leva a uma proposta vazia. A quase ausência de peças que ilustrem a história da cidade, também contribui para uma ideia de vazio. Os textos são de uma ligeireza difícil de qualificar, sem qualquer objetivo de transmitir factos fundamentados. As imagens, sejam elas desenhos, pintura, fotografias, peças de cartografia são também quase inexistentes. É um espaço que faz referência a várias personagens de tempos diferentes, mas mesmo estas são apresentadas sem a densidade que as caracteriza. São apenas nomes associados a períodos históricos, sobre os quais também muito pouco é dito. Por outro lado parece que a “cidade” se limita aos seus espaços mais antigos, que não tem relações com a terra que a sustenta e a justifica, com o contexto geográfico. A cidade contemporânea é uma inexistência o que não se compreende, pois Viseu é a mais equilibrada, em termos de desenvolvimento urbano recente, de todas as cidades de Portugal.
O Museu de História da Cidade é uma peça de entretenimento. Mais parece um exercício de comunicação de design, em paredes pretas com letras redondas e amarelas. Estamos perante um espaço de propaganda a fazer lembrar os tempos áureos do Estado Novo, a exposição do Mundo Português, de 1940, há quase 80 anos.
Este "museu" é bem um espelho do rumo da administração da cidade, no afunilamento progressivo das ideias. Um espaço museológico deverá ter várias camadas de conhecimento, servir diferentes públicos, não esconder a evolução, nem sempre clara e linear, de um organismo urbano com mais de dois mil anos de história. A representação da cidade de Viseu não se pode resumir a algumas ideias excessivamente simples, redutoras e pobres, deixando de fora a beleza intrínseca das tensões que sempre fizeram, inevitavelmente, parte do seu ADN. Muito do fascínio da cultura, dos fazeres humanos, está nas suas contradições. Quando, deliberadamente, queremos fazer simples o que é belo e complexo, estaremos, mais uma vez a falhar na construção de uma sociedade informada, exigente e livre.
Viseu. 2019 |
É um exemplo que poderá ser transposto para outros lugares, onde vinga a "glória efémera"...
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