segunda-feira, 3 de junho de 2019

29 de abril 2019

[Caminhar oblíquo 04] Desperto ao raiar da aurora. Ainda dentro do saco-cama, ouço o cântico de aves. Esta é uma das mais gratas formas de acordar. É a sonoridade e a memória de mais de trinta anos de uma vida que procura esta proximidade a um sentido de verdade que se eleva da terra e que é, simultaneamente, benigno e cruel.
Barca d'Alva, prox. Figueira de Castelo Rodrigo. 29 de abril de 2019
Quando nos fixamos numa paisagem para passar a noite e quando esta já está avançada, é sempre com espanto que, na madrugada seguinte, observamos a paisagem. Do local onde me encontrava via as águas do rio Douro e a terra trabalhada pelos agricultores ao longo de sucessivas gerações em trabalhos árduos. Muito em breve abandonaria este vale para me dirigir na direção da serra da Marofa, que por agora ainda não se vislumbrava a recortar o horizonte. Atravessava terrenos lavrados, de solos acentuadamente pobres, de uma agricultura de subsistência, um mundo que não está abandonado, mas que está em perda, em processo de desertificação humana mas onde ainda é notada a resistência de quem, por vários motivos, não abandona a terra.
Barca d'Alva, prox. Figueira de Castelo Rodrigo. 29 de abril de 2019
Este é um país “normal” onde nada parece ocorrer. Quietude. São os caminhos rurais e o entrar nas aldeias pela porta dos fundos, por veredas, pelo silêncio do próprio caminhar. Reencontrava a memória das primeiras caminhadas que fizera, nos anos oitenta do século passado, quando o país era substancialmente diferente do que é hoje, mas onde os problemas da desertificação já se faziam sentir há mais de vinte anos. Lembro a serra do Alvão, particularmente, que percorri com amigos em 1989. Era quase como se o tempo tivesse parado, esperado por algo que nunca viria a acontecer.
Esta é a imagem de uma paisagem rural “imemorial”, não contaminada por elementos "dissonantes", descontinuidades que perturbam um qualquer arquétipo visual que associamos a equilíbrio, a estabilidade, permanência. Mas pode haver muito de enganador, ou escondido, numa imagem de um mundo rural ordeiro e belo.
Vilar de Amargo, prox. Figueira de Castelo Rodrigo. 29 de abril de 2019
A meio da tarde contornava as faldas poente da Marofa e iniciava a descida para o Côa. Aí deveria fazer a travessia do rio a vau, junto ao local em que este recebe um seu tributário, a Ribeira das Cabras. O caudal do rio estava invulgarmente forte para esta época do ano. Procurados vários pontos para fazer o atravessamento, todos se revelaram excessivamente perigosos e arriscados, sobretudo devido à mochila. A opção foi a de acompanhar o rio para montante na esperança de encontrar um ponto de passagem. Nada. Ao fim de um dia esgotante, particularmente devido ao calor, deparava-me com este duro obstáculo, que seria a de ter de fazer um desvio considerável para encontrar uma ponte, a montante. Ainda não era tarde mas decidi não mais prosseguir a jornada. Precisava de descansar e processar esta contrariedade. O desvio obrigar-me-ia a fazer mais cerca de 12 quilómetros. Montei a tenda nas margens do rio, num local muito tranquilo, perto de uma quinta abandonada, cuja ruína, de vários edifícios se encontrava muito avançada.
Rio Côa, Moinho da Susana, prox. Figueira de Castelo Rodrigo/Pinhel. 29 de abril de 2019
Ao rio Côa não posso deixar de associar as gravuras rupestres, cujos principais núcleos se localizam a cerca de 30 quilómetros a jusante deste local onde iria passar a noite. Em 1995, uma barragem de grandes dimensões estava em construção. É então revelado um achado arqueológico de grande significado: um conjunto de gravuras rupestres representando, generalizadamente, animais, alguns deles já extintos. A datação das gravuras viria a confirmar a sua singularidade. Eram imagens do Paleolítico Superior. Ao longo de meses foram sendo comunicados mais achados. Estávamos perante o sítio mais extenso e com maior número de gravuras ao ar livre conhecido até hoje. As gravuras apresentavam outra particularidade, definham um arco temporal de intervenção desde aquele período remoto, há cerca de 30.000 anos, até aos anos 50 do século XX.
Há qualquer coisa fascinante no desenho. É a possibilidade de inscrever um traço sobre uma superfície. A simplicidade de um gesto que abre mundos. Talvez tenha sido das primeiras formas de comunicar desenvolvida por humanos, muito antes da escrita. O desenho inventará a palavra. A pintura virá como uma representação “final” da realidade. A fotografia evoluirá já como uma complexificação extrema da imagem: “é” a própria realidade com os seus significados dúbios, antagónicos, indefinidos. Mundo quântico em explosão. A arte caminha ao lado da ciência. Conhecimento, futuro, infinito gelado e silencioso, espaço sideral. Paraíso perdido na impossibilidade de fixação num lugar determinado. Movimento contínuo. A interminável viagem da vida. A alguém deixaremos o registo da nossa etapa, um testemunho para outros caminhos. Desenhos sobre desenhos. Palimpsesto. Mapas para o futuro. Uma linha sobre a terra é um gesto solitário, arquitetura recriada para o tempo vindouro. Algures haverá chuva. A dureza de um mundo mineral, ou a neve branca, fria como o universo que observamos antes de sermos tomados pelo sono das noites ao relento.

Dia: 29 de abril de 2019, segunda-feira
Lugar referência: Rio Côa, Serra da marofa
Pernoita: Rio Côa, prox. Pinhel
Quilómetros percorridos: 33,7
Quilómetros acumulados: 50,7
Concelhos atravessados: Figueira de Castelo Rodrigo
Cartas militares: 142; 151; 152; 161; 171
Fotografia inicial: dg897184, 05h57
Fotografia final: dg897678, 19h43
Duração trabalho fotográfico: 13h46
Fotografias: 495
Somatório fotografias: 895
Fotografias selecionadas: 87 (17,58%)

1 comentário:

  1. Obrigado, Duarte, pela partilha. É como tivéssemos ido contigo, dentro da tua consciência.

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