terça-feira, 31 de julho de 2012

O Côa hoje


Vale do Côa, regresso [11]. A construção do Museu marcou o fim de um processo, de um percurso pelas contradições da contemporaneidade, das cicatrizes deixadas no solo depois de uma batalha em que hoje já não é importante falar em derrotas e vitórias. De alguma forma todos perderam, mas também a preservação das gravuras é algo que deve ser salientado. Não podemos deixar de nos colocarmos uma questão: o que é o Vale do Côa hoje?
Gravuras rupestres da Ribeira dos Piscos (vista noturna). 1995
Há cinco elementos chave nesta paisagem do curso terminal do Côa. As gravuras são o elemento mais importante, pela sua singularidade, pela sua antiguidade, são a expressão da sobrevivência de uma polémica longa, mas estão rodeadas por intervenções humanas na paisagem que a marcam indelevelmente a atual paisagem do vale.
Um segundo elemento é, sem dúvida, a cicatriz deixada nas margens do rio pela obra abandonada da barragem. Houve extensos movimentos de terras que são hoje a marca de um combate perdido.
Obra da Barragem. 1995
Local da obra da Barragem. 2012

A barragem do Pocinho, no rio Douro, enche uma albufeira que chega praticamente ao lugar da Penascosa, submergindo, desde 1983, vários núcleos de gravuras. O esvaziamento pontual da barragem permitiu revelar uma realidade que não fora atendida no período da construção daquela barragem.
Barragem do Pocinho. 2011
Um quarto elemento é a quinta da Ervamoira, que também esteve sob a ameaça de ficar sob a águas da albufeira da barragem. Hoje esta quinta é como que um jardim desenhado num solo que se oferece com pendentes suaves.
Quinta da Ervamoira. 2012
Mas há um quinto elemento que nunca foi especialmente referido durante a polémica da barragem, mas que provoca na paisagem uma marca acentuada. São as pedreiras do Poio, de onde é feita a extração de xisto, de lousa, há várias décadas. O destino inicial dessa extração foi, creio, os esteios para a vinha de todo o vale do Douro. Hoje, nas quintas em modernização ou na plantação de vinha nova, são usados esteios metálicos. As pedreiras estão apostadas na indústria das rochas ornamentais, de aplicação na construção civil. O processo de extração de pedra não parece ter fim, ainda que a cicatriz causada pelas pedreiras tenha uma dimensão cada vez maior. Há um núcleo de gravuras, o sítio da Canada do Inferno, que fica a escassas centenas de metros das pedreiras. É para montante deste sítio, e até à quinta da Barca, que se situam os principais núcleos de gravuras como sejam o do Fariseu, de vale Figueira, da Ribeira dos Piscos e o da Penascosa. Para montante destas terras de xisto temos um vale que se adensa e que se aperta já em solos de granito e onde podemos ainda observar outros núcleos de expressão desenhada, particularmente de períodos da idade dos metais. Mas as pedreiras do Poio também se apresentam como um espaço de inquietação e de mistério para quem hoje as percorre. Há zonas da pedreira que estão desativadas que se assemelham à ruína de uma cidade habitada por colossos.
Pedreiras do Poio. 2012

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Pode fotografar

Museu do Côa. 2012

Vale do Côa, regresso [10]. Em contrário do que acontece em quase todos os museus, à pergunta se se pode fotografar no interior do Museu do Côa, é-nos dito que sim. Há sempre todos os motivos para que seja negado o direito de fotografar, nomeadamente a segurança das peças (tudo o que podermos fotografar encontra-se em catálogos ou postais ilustrados), controlo da imagem, ou identidade, de uma instituição, ou outros motivos menos claros, que nunca alguém me soube explicar convincentemente. Fotografar é integrar num universo pessoal, é partilhar uma alegria e um encantamento que se teve por um espaço, por uma peça, por uma vivência, por uma sensação única que quisemos fixar. Fotografar num museu, numa galeria, é como fotografar uma paisagem e se regista um fragmento da identidade de um lugar, ou mesmo de um país. Fotografar é um ato de liberdade, mas também um primeiro passo para a partilha. De um ponto de vista pragmático poderemos questionar-nos se haverá um meio mais eficaz de fazer de cada cidadão um veículo de divulgação dos conteúdos de um espaço museológico? Numa altura em que as imagens se desmaterializam no espaço digital, que melhor convite haverá que aquele de recebermos no nosso mail, ou vermos numa página de uma rede social, algumas fotografias de um museu que não conhecíamos? (Deixo o meu reconhecimento e gratidão à direção do Museu do Côa por esta permissão de fotografar).

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Desenhos no vale

Réplica de gravuras do lugar do Fariseu. Museu do Côa. Vila Nova de Foz Côa. 2012

Vale do Côa, regresso [09]. O museu do Côa é a digna homenagem ao vale e à complexidade da sua arte ao longo de milhares de anos. Aqui sente-se o cheiro da terra, há uma leitura de aproximação às gravuras, há uma explicitação do seu contexto, há, também, um convite para que os vários núcleos de gravuras sejam visitados. Não é um museu de coleção, aqui não estão expostas as gravuras, pois não fazia sentido retirá-las do vale. A defesa das gravuras assentou na relação indissociável que estas estabelecem com o rio, há como que um diálogo entre as representações de animais e o curso do rio, o seu leito, as suas águas de caudal variável. Existem elementos arqueológicos colhidos em várias estações arqueológicas do Parque; são artefactos relacionados com o quotidiano de comunidades de caçadores-recoletores que habitaram aqueles lugares. Torna-se evidente no conteúdo do museu o trabalho aturado e aprofundado de pesquisa em todo o território do Parque. Impressiona o visitante como foi possível encontrar tantos elementos que nos permitem hoje tomar conta da reconstituição dos vários períodos pré-históricos e históricos em que o vale foi chão, casa de hominídios que já dispunham da capacidade para deixar as suas marcas de povoamento. Em diversos suportes estão reproduzidas várias gravuras; são elas que verdadeiramente conferem o sentido e a singularidade da arte do Côa. Existem várias réplicas de rochas gravadas, existe a sua reprodução nas paredes e noutros suportes. É nestas reproduções que, com muita clareza, nos podemos abeirar do quão extraordinária é a arte do Côa, da subtileza do seu desenho, da perícia dos seus executantes, do realismo das proporções e do rigor com que estão traçados os animais representados. É um mundo maravilhoso e ofuscante, quando lido no tempo e no lugar em que foi executado.
Museu do Côa. 2012

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Museu

Museu do Côa. 2012

Vale do Côa, regresso [08]. No ano 2010 foi aberto ao público o Museu do Côa, representando como que o desfecho de toda uma polémica que, mesmo hoje, ainda desperta paixões, pois quem olha as gravuras de forma apressada e sem se aperceber de toda a complexidade do seu contexto, eventualmente pensará que semelhante manifestação artística não merecia o fecho da obra da barragem. O museu foi edificado no alto do promontório sobranceiro aos vales do Côa e do Douro. De uma singular e qualificada obra de arquitetura podemos observar a grandiosidade da paisagem que deu origem a uma das mais notáveis manifestações culturais conhecidas do homem do Paleolítico. O Vale do Côa é hoje considerado o mais importante sítio ao ar-livre, com gravuras rupestres, no mundo. 
Rio Douro e rio Côa, a partir do terraço do Museu. 2012

terça-feira, 24 de julho de 2012

Saída sem regresso

Portaria de acesso à obra da barragem de Foz Côa. 2011

Vale do Côa, regresso [07]. Houve um momento em que um último homem deixou os estaleiros da obra ao abandono. Um momento em que não mais houve regresso de nenhum funcionário ao serviço da obra, da sua segurança. Já nada mais haveria para remover. Hoje apenas algumas pessoas visitam, ocasionalmente, a ruína de algo que não foi construído. Há no solo trilhos meio apagados, suaves e breves marcas de passagem sem destino. É o silêncio, quebrado pelo canto das aves, que toma conta do lugar.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Classificar

Vila Nova de Foz Côa, a partir do alto de São Gabriel. 1996

Vale do Côa, regresso [06]. Vila Nova de Foz Côa vivia num certo marasmo, como acontece em muitas povoações do interior de Portugal, em que se vem assistindo a uma perda continuada de população desde o início do século XX. Em 1994 era iniciada a construção de uma barragem de grandes dimensões, junto à foz do rio Côa. Alguns meses mais tarde é divulgado um achado arqueológico que ficaria submerso se a barragem fosse edificada. É iniciado um aceso debate entre os defensores da barragem e aqueles que pugnam pela preservação do património arqueológico e cultural do vale. Já se havia realizado um avultado investimento nas infra-estruturas para a construção da barragem. Quando foi interrompida a obra, já o grande rasgo que iria receber o paredão de betão da barragem, estava aberto, pronto a receber as primeiras betonagens. Mas foi isso que aconteceu, a obra parou. Durante meses ainda permaneceram no local todas as estruturas prontas para a retoma dos trabalhos. Mas estes não vieram a acontecer. Em agosto de 1996 é criado o Parque Arqueológico do Vale Côa. No ano seguinte a arte do Côa é classificada como monumento nacional. O conjunto das gravuras viria mais tarde, em 1998, a ser classificado como património da humanidade, pela UNESCO.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Piscos

Ribeira dos Piscos e Rio Côa. 1995
Ribeira dos Piscos e Rio Côa. 2012
Vale do Côa, regresso [05]. Quem visita o núcleo de gravuras rupestres da Ribeira dos Piscos, vem de jipe da Muxagata, certamente com ar-condicionado, "aterra" no fundo da ribeira, percorre umas dezenas de metros até ao local onde se encontram os painéis gravados no Paleolítico. Sem um eventual esclarecimento anterior, sem o conhecimento mínimo do vale, talvez seja pouco encontrar meia dúzia de traços numa superfície rochosa. Este fator demoverá eventuais visitas futuras, mas a arte do Côa revela uma subtileza que em muito transcende o que se pode observar em painéis de gravuras isolados. Há uma relação do desenho com o vale, com uma extensão de cerca de 17 quilómetros de marcas gravadas ao longo de milhares de anos.
Mas o regresso à Ribeira dos Piscos revela também alterações na paisagem. Há uma mudança que muitas vezes nos escapa na leitura dos lugares. Há um dinamismo que esconde uma vertigem temporal a que muitas vezes não somos sensíveis. Há algo de imparável na Natureza que vai além de algumas morfologias, da erosão, do coberto vegetal. Há um mistério que integramos.
Gravuras rupestres da Ribeira dos Piscos. 1995

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Desencontro

Quinta da Barca. 2012
Vale do Côa, regresso [04]. Depois da pernoita no vale, uma caminhada matinal à procura de um conjunto de gravuras da Quinta da Barca. Aqui tinha estado em 1995, mas não dera com elas numa primeira tentativa. Agora voltei a não dar com elas. Foi um primeiro desencontro com estes painéis de gravuras que não se encontram na lista dos lugares visitáveis em viaturas do Parque Arqueológico do Côa. Haverá outros desencontros de que aqui darei conta noutras ocasiões. Havia várias coisas que mudaram no vale. Mas esta condição de regresso também revelará o tempo irrepetível.
Quinta da Barca. 1995

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O coração de um lugar

Vale do Côa nas proximidades da Penascosa. 2012

Vale do Côa, regresso [03]. Ainda sem ter tido a oportunidade de o confirmar através de fotografias mais antigas ou outros elementos, parece haver um aumento da área cultivada de vinha, nomeadamente na quinta da Ervamoira, que se atravessa no percurso entre Chãs e o Côa. No fundo do vale tudo parece permanecer numa dimensão atemporal. Talvez a maior diferença em relação ao ano de 1995 seja um acentuado crescimento das árvores que agora assumem uma presença mais significativa criando uma cortina visual. O silêncio é apenas quebrado pelas aves, pelo vento nas folhas, pelos insetos, pelo marulhar do rio que agora está com o caudal muito baixo, depois de um inverno e primavera de pouca precipitação. À noite, como que nas vagas de um oceano inexistente, o coaxar das rãs faz-se ouvir com intensidade descontinuada. Este era o reencontro com a força telúrica de um vale, com o carácter de uma paisagem que motivou, há dezenas de milhares de anos, a fixação de comunidades humanas que aqui deixaram uma mensagem para o futuro. Foi a perenidade dos traços deixados nas rochas. Estava agora no coração desse lugar, na proximidade dos mais significativos conjuntos de gravuras do Vale do Côa.
Quinta da Ervamoira. 2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

Santuário Rupestre de Chãs

Sítio da Cabeleira de Nossa Senhora, Chãs. Vila Nova de Foz Côa. 2012

Vale do Côa, regresso [02]. O lugar de Chãs situa-se a pouca distância da grande falha da Vilariça, que aqui corre, sensivelmente, paralela ao curso terminal do vale do Côa. Nas proximidades da aldeia, a noroeste, existem dois grandes penedos como que pousados sobre um afloramento granítico relativamente contínuo e regular, com uma pendente pouco acentuada. No local não há evidentes vestígios arqueológicos de uma sacralização daquele que é hoje denominado Santuário rupestre da Lapa de Nossa Senhora, ou da Cabeleira da Nossa Senhora. É no entanto possível que no local tenha existido um altar e um recinto sagrado, onde se realizaram festividades rituais. Hoje o espaço é venerado como o atestam a presença de imagens da Virgem Maria, num pequeno nicho, num dos penedos, que por aqui teria passado aquando da sua fuga para o Egito. O outro rochedo está assente no solo em três pontos, entre os quais se desenvolve uma abóbada que está alinhada com a direção do ponto onde nasce o Sol, aquando dos equinócios da primavera e do outono.
Este foi um primeiro ponto de paragem antes de descer ao Vale do Côa. Era o anúncio de uma paisagem de povoamento muito remoto, que nas margens do rio encontra uma das mais notáveis expressões do desejo de intervenção na paisagem e construção de um mundo racional.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Vale do Côa, regresso

Vale do Côa a partir da capela de São Gabriel, Castelo Melhor, Vila Nova de Foz Côa. 1993

Vale do Côa, regresso [01]. Em 1995 é divulgado um conjunto de gravuras rupestres nas margens do rio Côa, próximo de Vila Nova de Foz Côa. Certamente que a descoberta, por si só, não iria despertar grande atenção, que não fosse pela comunidade científica, mas um elemento iria perturbar a calma de um interior quase esquecido: uma barragem de grandes dimensões estava a ser construída na foz do Côa. Após a conclusão da obra os mais notáveis painéis contendo gravuras iriam ficar submersos sob uma albufeira de grandes dimensões. A história é longa e conhecida. A construção da barragem foi interrompida, o vale foi investigado por arqueólogos durante vários anos, num trabalho que prossegue na atualidade. Não eram apenas alguns painéis gravados: no conjunto revelaram-se centenas de gravuras e de sítios arqueológicos desde o paleolítico às idades do metais, numa continuidade de inscrição nas rochas que continuou até meados do século XX. Em dezembro de 1993, eu atravessara o curso terminal do Côa em viagem de recolha fotográfica, onde voltaria em agosto do ano seguinte. Algumas dessas fotografias viriam a ser publicadas durante a polémica que se gerou em torno da defesa do património do Côa. Começava assim uma ligação ao vale que me levou a visitá-lo várias vezes. Passaram 18 anos sobre a minha viagem inicial. Voltei ao vale.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Vulcões

Faial. 2007

O espaço humano é, muitas vezes, o do ruído e da entropia, algo que apenas se encontra na Natureza após cenários de catástrofe, cataclismo, como terramotos, vulcões, furacões. As fotografias constroem imaginário. São imagens, interpretações de um mundo visível e criam, por isso, condições novas de observação da realidade.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Livros, fotografias

Biblioteca Nacional de Portugal. Comboios de Livros. 2009


Os livros são matéria de construção de um território humano, são afirmação do desejo de conhecimento, de partilha, são a fixação da memória, testemunho, expressão de singularidade, movimento criativo. Como a palavra, ou as fotografias, são a procura continuada de um equilíbrio maior num universo de fragmentos, aparentemente, díspares e desconexos.

Ruy Belo. Coisas de Silêncio. 2000