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Foz da Ribeira dos Piscos, Rio Côa. 2012 |
Vale do Côa, regresso [12]. Há no Côa uma envolvência que se vem tornando cada vez mais complexa, nas mais recentes décadas que vivemos. É esta a paisagem conturbada do curso terminal do Côa, é aqui que se localizam as gravuras, entre profundos e perturbadores rasgos no solo. As gravuras foram o primeiro gesto de uma intervenção duradoura na paisagem, um passo inaugural, um delicado desenho e o dealbar perene da fixação do tempo e da forma, da realidade, em superfícies rochosas. Este é quase como o primeiro registo materializado de uma espécie que se vai emancipar de todas as outras e desenvolver um universo de razão, inexistente até então. Há um conjunto de gravuras que estabelecem uma relação verdadeiramente única com o vale. Seria esta leitura que as águas da barragem iriam destruir. Esta é uma das mais notáveis e arcaicas intervenções conhecidas do homem paleolítico em todo o mundo. Não se pode comparar, diretamente, a arte do Côa com outras manifestações gráficas como, por exemplo, as pinturas de Altamira, Lascaux ou Chauvet, que se encontram em grutas e que talvez tenham sempre guardado segredos rituais apenas acessíveis a comunidades locais. As gravuras do Côa foram sempre uma arte pública a envolver todo um território, a promover a participação de um vale, de um rio, a convocar um espírito do lugar. Muito antas do advento das cidades, já no Neolítico, as comunidades de hominídeos viviam em movimento, ou temporariamente fixadas em pequenos acampamentos temporários, sempre de enorme precariedade, sujeitas as numerosas variáveis, como o clima, os recursos de caça disponíveis ou a proximidade de outras comunidades hostis. As manifestações rupestres do Côa incrementam o nosso conhecimento sobre um período da evolução humana de que não abundam elementos com esta qualidade. Mas também estimulam hoje a nossa imaginação, dão-nos pistas para a descodificação de um passado muito remoto. O vale do Côa é quase como uma primeira cidade, ainda sem estruturas edificadas permanentes, sem arruamentos, mas já com o desejo de marcar e habitar um território em permanência, de o integrar numa cosmicidade que dava os primeiros passos numa interpretação da vida, do mistério da morte, da consciência de um tempo que passa.
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Rio Côa a partir do rasgo aberto pela obra da barragem. 2012 |
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