sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Amizade e sabedoria

Duarte Belo e Álvaro Duarte de Almeida. Vértice geodésico de São Gabriel. 1995

Vale do Côa, regresso [18]. Esta viagem, como as anteriores dos anos 90, foram feitas na companhia de Álvaro Duarte de Almeida, que conheci em 1985, quando foi meu professor de Geometria Descritiva, na Escola Secundária D. Pedro V, em Lisboa. Com ele e com outros colegas, seus alunos, fiz as primeiras viagens por Portugal. O modelo das viagens era precário. Deslocávamo-nos para os pontos de partida de transportes públicos e, quase sempre, iniciávamos uma caminhada de vários dias, por serras ou vales de rios, que apesar de nem terem passado muitos anos, eram na altura muito diferentes. O tempo era passado em caminhada por paisagens que todos nós descobríamos com o espanto de algo que não fazíamos sequer ideia que pudesse existir. Havia a revelação de um país; era a geografia comum, o património cultural, os elementos de uma identidade portuguesa, diversa e impalpável. Nos fins de tarde de Verão estendíamos um saco-cama no chão e, em noites de céu limpo, tínhamos metade do Universo em frente do nosso olhar. O Álvaro Duarte de Almeida tinha essa capacidade rara de ao seu redor reunir pessoas a quem transmitia uma sabedoria imensa, o fascínio pela condição de estar vivo, pelas paisagens contínuas e intermináveis, pelos gestos humanos deixados num solo comum a definir um passado e a enunciar o futuro. Cada viagem era o caminhar por milhões de anos da dimensão geológica da fabricação do nosso planeta, ou milhares de anos de laboriosa construção da civilização humana. O tempo foi passando e uma geração de seus alunos teve este privilégio de um habitar verdadeiramente singular. Na vida há poucas pessoas que nos constroem, que nos sugerem que a liberdade vale a pena ser vivida, que uma existência não deverá deixar de olhar um céu escuro de pontos luminosos, imaginar mundos próximos e distantes.
Aqui termina este conjunto de textos de revisitação ao vale do Côa.
Álvaro Duarte de Almeida e Duarte Belo. Vértice geodésico de São Gabriel. 2012

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Um olhar próximo e distante

Paisagem crepuscular a norte da capela de São Gabriel. Castelo Melhor. 1995

Vale do Côa, regresso [17]. Em Portugal, Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro, recentemente editado, confrontava, com um olhar distanciado, as fotografias de Orlando Ribeiro com os lugares que atualmente se me deparavam para uma nova tomada de vista. Eu não conhecera estes lugares na altura em que foram visitados pelo geógrafo português, que desenvolvera as suas recolhas fotográficas entre 1937 e 1983. Só três anos depois, em 1986, é que começava a viajar sistematicamente por Portugal. Agora, em Foz Côa, regressava a um passado que fora vivido por mim próprio, havia uma relação de proximidade, havia um território comum entre dois tempos diferentes, que, não sendo muito distantes, deixavam a sensação de angústia maravilhada de um tempo imparável.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A memória grata do habitar

Noite no sítio da Penascosa, 1995

Vale do Côa, regresso [16]. Esta viagem pelo vale do Côa foi também a revisitação de uma memória, de uma vivência, em 1995, em torno da defesa das gravuras, da perceção, na altura ainda um pouco incipiente, do valor de todo o conjunto do vale. Este passado de ligação, o facto de ter vivido, pessoalmente, uma série de experiências naquela paisagem, condiciona de forma acentuada, o meu olhar atual sobre o vale do Côa e os seus elementos significantes. No entanto a memória grata do habitar o vale antes da criação do Parque Arqueológico, da pernoita junto dos núcleos das gravuras, hoje, por vários motivos, já não é possível. Está como que quebrada essa continuidade existencial que na altura era possível viver entre o rio, o vale e as gravuras. Contraditoriamente passou a ser possível, em liberdade, o acesso à área da obra da barragem. Mas esta viagem é a da impossibilidade de um regresso, o que por si só não é relevante. Esta é a síntese de todas as impossibilidades de regresso ao passado perante o espanto, sempre surpreendente, do tempo que passa, de tudo o que se transforma. Não são apenas as paisagens que se transformam, talvez seja, muito mais, o olhar descodificador de quem as lê e interpreta, integra no seu universo vivencial, numa intransmissível escala espacio-temporal. Há o tempo das paisagens, há o tempo que flui dentro de nós, há toda a complexidade do regresso que podemos querer, mas que nem sabemos agora como foi por nós vivido no passado. Houve laços que se quebraram que são como as fotografias que apenas nos deixam o pequeno fragmento do tempo do seu registo, mas quase nada informam sobre um antes e um depois, ou o que está para além das margens do seu recorte.
Ruína da obra da barragem. 2012

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O solo da ruína

Britas abandonadas no solo da obra da barragem de Foz Côa. 2012
Vale do Côa, regresso [15]. Se aproximarmos o olhar do solo da ruína, vemos uma micro natureza a tomar parte de algo que lhe fora estranho. Em todos os lados há vestígios de um processo de renaturalização que vai envolvendo todos os elementos. As britas deixadas no chão, que deveriam integrar o grande paredão da barragem, estão envoltas por musgo, que agora está seco, mas que vai reverdecer com as primeiras chuvas. As estruturas de betão construídas para o apoio da obra, mantêm a sua imponência rasa, de elementos abandonados prematuramente. Depois pequenas marcas, trilhos, carreiros de pé posto, muitas vezes quase impercetíveis, percorrem estes lugares. São os passos deixados por alguém que por qualquer motivo, atravessa esta paisagem contraditória, sem aparente motivo que o justifique. Itinerários de margem.

sábado, 4 de agosto de 2012

Pernoita

Sítio da Penascosa (prox.). 2012

Vale do Côa, regresso [14]. Nesta revisitação do vale do Côa a primeira noite foi passada perto do sítio da Penascosa, ouvindo o leve marulhar do rio, o coaxar das rãs e o canto das aves. A segunda noite foi passada na ruína das obras da barragem, num ponto bastante elevado de onde se colhia uma vista abrangente sobre o vale. Esta viagem foi como que uma errância, o movimento nas margens de um equívoco, o despojamento da aceitação de uma realidade estranha, assente num paradoxo, como que o inverso de um turismo que procura os feitos heróicos de uma humanidade, da glória do permanente, descontrolado e impossível crescimento. Este é o turismo insuspeito; é uma deslocação difícil de definir, como que desadequada e irracional: uma realidade que cruza a delicadeza das gravuras rupestres com os profundos rasgos deixados por uma obra abandonada.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Partir do Côa

Estação ferroviária de Foz Tua, Linha do Douro. 2012

Vale do Côa, regresso [13]. O vale gravado do Côa pode ser hoje o ponto de partida para uma grande viagem, onde como que se encontram os grande problemas e desafios do Portugal contemporâneo, e da gestão do território de uma Nação. Não longe daqui há outros vales imponentes, como sejam os do rio Sabor ou do rio Tua e, sobretudo, o entalhe vertiginoso do Douro, espinha dorsal de uma região vasta, que para montante do Côa vai progressivamente assumindo uma dimensão ímpar. Num contexto alargado o vale do Côa é como que o centro arcaico de um movimento de apropriação da paisagem que deixou marcas em todos os períodos históricos e que ainda hoje não terminou. Hoje, nas vilas e cidades de interior, como Vila Nova de Foz Côa, não deixam de se construir edifícios públicos, complexos desportivos, salas de congressos, pavilhões de exposições. Luta-se, com o betão, contra a perda sistemática de população, contra o adormecimento e abandono de uma paisagem vastíssima. Abandonam-se terras pobres e secas, deixa-se a luta milenar pela edificação de uma cultura. Foge-se para o conforto, muitas vezes ilusório, das grandes cidades, para a integração na magna urbe onde, em fusões e contaminações de hábitos e fazeres, se define a contemporaneidade. Talvez seja o futuro precário de todos nós, de uma sociedade onde procuramos estar integrados, construir a nossa casa, criar um imaginário de referências, de valores, numa abstração por vezes criativa, mas quase sempre esmagadora da individualidade, ou identidade, de cada um dos seus cidadãos.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O significado do Côa

Foz da Ribeira dos Piscos, Rio Côa. 2012

Vale do Côa, regresso [12]. Há no Côa uma envolvência que se vem tornando cada vez mais complexa, nas mais recentes décadas que vivemos. É esta a paisagem conturbada do curso terminal do Côa, é aqui que se localizam as gravuras, entre profundos e perturbadores rasgos no solo. As gravuras foram o primeiro gesto de uma intervenção duradoura na paisagem, um passo inaugural, um delicado desenho e o dealbar perene da fixação do tempo e da forma, da realidade, em superfícies rochosas. Este é quase como o primeiro registo materializado de uma espécie que se vai emancipar de todas as outras e desenvolver um universo de razão, inexistente até então. Há um conjunto de gravuras que estabelecem uma relação verdadeiramente única com o vale. Seria esta leitura que as águas da barragem iriam destruir. Esta é uma das mais notáveis e arcaicas intervenções conhecidas do homem paleolítico em todo o mundo. Não se pode comparar, diretamente, a arte do Côa com outras manifestações gráficas como, por exemplo, as pinturas de Altamira, Lascaux ou Chauvet, que se encontram em grutas e que talvez tenham sempre guardado segredos rituais apenas acessíveis a comunidades locais. As gravuras do Côa foram sempre uma arte pública a envolver todo um território, a promover a participação de um vale, de um rio, a convocar um espírito do lugar. Muito antas do advento das cidades, já no Neolítico, as comunidades de hominídeos viviam em movimento, ou temporariamente fixadas em pequenos acampamentos temporários, sempre de enorme precariedade, sujeitas as numerosas variáveis, como o clima, os recursos de caça disponíveis ou a proximidade de outras comunidades hostis. As manifestações rupestres do Côa incrementam o nosso conhecimento sobre um período da evolução humana de que não abundam elementos com esta qualidade. Mas também estimulam hoje a nossa imaginação, dão-nos pistas para a descodificação de um passado muito remoto. O vale do Côa é quase como uma primeira cidade, ainda sem estruturas edificadas permanentes, sem arruamentos, mas já com o desejo de marcar e habitar um território em permanência, de o integrar numa cosmicidade que dava os primeiros passos numa interpretação da vida, do mistério da morte, da consciência de um tempo que passa.
Rio Côa a partir do rasgo aberto pela obra da barragem. 2012