segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Acesso. O Núcleo da Claridade #8

Bilhetes de Ruy Belo

Talvez pela necessidade de ter o seu próprio tempo passado arrumado, devidamente estruturado no exterior de uma memória que pode falhar, Ruy Belo guardava tudo, desde os mais importantes documentos, até aos pequenos bilhetes de deslocações, em transportes públicos, que efectuava. Há todo o registo dos aspectos de uma vida funcional, as contas que foram pagas, as compras a fazer, as pequenas notas de tarefas quotidianas, as listas de contactos de amigos, com moradas e telefones, as datas de aniversários, e muitos outros documentos. Depois, sem que consigamos definir uma clara linha de separação, há os documentos relacionados com a escrita poética e com todo o processo criativo. Num olhar atento percebemos que há uma contaminação, que se espalha, que se dissolve, que ressurge noutros papeis. No meio de documentos de natureza diversa, encontramos palavras isoladas, que nada têm de relação com esse mesmo documento. Podemos encontrar um verso num bilhete de autocarro, ou um poema nas costas de uma factura. Este é um mundo que se vai abrindo de uma forma perturbadora, na consciência de quem neles fixa o olhar. A procura de um poema, a comunicação pela palavra, estava omnipresente em todos os aspectos da vida de Ruy Belo. As mais improváveis situações de vivência diária, poderiam fazer surgir, ocasionalmente, o começo de um verso, a continuidade de um outro, a estrutura de um conjunto de poemas, o nome de um livro. O que fascina nos inúmeros papeis que deixou, das mais diversas formas e origens, é que podemos delinear um caminho, tentar seguir um trilho criativo, a origem de um poema e a forma como se construiu, ao encontrarmos palavras dispersas em vários suportes. Mas esta é também a imagem de um mundo fragmentado, pois se por um lado se podem ver várias versões de um mesmo poema, por outro lado, estes papeis tornam eventualmente impossível seguir o trilho desses versos, pois à medida que neles detemos a nossa atenção, deparamo-nos com um mundo que progressivamente se ramifica e que se diluiu noutros versos e noutros poemas. Aparentemente poderíamos traçar o mapa do seu processo criativo, a génese de um poema, mas a ilusão dessa tarefa iria esvanecer-se nos próprios poemas que se ligam uns aos outros, numa teia complexa e multidimensional. Habitamos, nestas superfícies, uma viagem inquietante em que aparentemente estamos a regressar ao ponto de partida, mas  nesse movimento, o começo de um poema já não está no mesmo lugar. Há, então, um chão que nos foge, um ponto de referência que se perde.

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