terça-feira, 21 de maio de 2019

Caminhar Oblíquo

No dia 28 de abril domingo, às 18h, iniciava uma viagem pedestre no Penedo Durão, Poiares, Freixo de Espada à Cinta. O objetivo seria o de atravessar uma longa diagonal montanhosa do centro de Portugal e chegar ao Cabo da Roca, Colares, Sintra. Esta é uma linha que divide o Portugal Atlântico, a norte, daquele outro meio país, a sul, sob influência climática da bacia do Mediterrâneo. Iria percorrer essa linha imaginária que, de forma indelével, distingue duas realidades que se entretecem num território relativamente pequeno mas com uma extraordinária diversidade paisagística. Este percurso de limbo, será um espelho disso mesmo.
Quinze dias após a partida, no dia 12 de maio, por volta das 14h30, chegava ao Cabo da Roca. Para trás ficavam 530 km percorridos numa viagem solitária de acentuada dureza, não apenas pela distância percorrida, as noites no campo ou pelo peso da mochila imposto pelos apenas dois reabastecimentos alimentares durante todo o percurso, mas também pela dificuldade de alguns troços atravessados, ou pelo clima a que não faltou o sol intenso e o calor, a chuva persistente, a neve ou o nevoeiro.
O únicos apoios que viria a ter seriam prestados por dois grandes amigos. O Luís Oliveira Santos viajou de Aveiro para se encontrar comigo em Viseu, onde resido, e me transportou para o ponto de partida, próximo do local onde o rio Douro deixa de ser fronteira entre os dois países Ibéricos e passa a correr em território português. O segundo apoio foi prestado no fim da viagem. O João Abreu foi ter comigo ao Cabo da Roca e deixou-me em Queluz. Embora tenha tido a disponibilidade destes e de outros amigos para apoio durante a caminhada, foi desde o início um objetivo a independência e autonomia desta travessia. Mesmo o uso de telemóvel estava extremamente limitado, uma vez que dispunha apenas de uma carga de bateria para todos os dias passados no campo. As comunicações seriam usadas para contactos esporádicos, orientações de recurso, ou para pedir ajuda no caso de acidente em lugar inóspito, contando que tivesse rede.
Foi uma viagem de solidão, um exercício pontual de afastamento a um mundo concreto diverso e disperso. Foi a voz silenciada, imersão em pensamentos, o percorrer toda uma vida em fragmentos de alegria e tristeza, condensada em passos de silêncio. Foram as noites ao relento sob a abóbada celeste e o despertar, na madrugada escura, ao som do chilrear dos pássaros invisíveis. Eram as noites mal dormidas, o cansaço extremo, as dores nos pés e nas pernas antes do adormecer. Era o reerguer-me, sempre com uma irracional determinação, para um novo dia.
Este é o relato sumário dessa travessia, da sempre procurada, na terra, reinvenção, redescobrerta, de um país. Talvez mais do que qualquer questão cultural ou identitária relacionada com o habitar de uma terra ao longo de sucessivas gerações que se perdem num tempo longo, este é também um processo de diálogo com essa mesma terra, com um regresso impossível a uma condição animal em que as angústias decorrentes de uma consciência racional, que se serve da linguagem simbólica e da tecnologia, se esbatem perante o continuado espanto de estar vivo, de descodificar o mundo visível, de atribuir nomes e significados às coisas, de tomar a consciência de um universo de iguais em que nos integramos e não nos distinguimos de qualquer outro ser, de uma árvore, de um inseto, de uma penedo, de uma nuvem.

Itinerário percorrido entre o Penedo Durão e o Cabo da Roca.

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