Numa viagem recente atravessei Portugal de norte a sul. Já em terras alentejanas paro o carro para fotografar animais a pastar. Quando me aproximo da cerca, as vacas e os bois levantam a cabeça e olham-me fixamente. Por breves momentos como que se estabeleceu ali um diálogo entre duas espécies biológicas diferentes. Fiz algumas fotografias. Haveria de recordar, mais tarde, outros encontros com animais, outras imagens, num percurso mental pelo meu arquivo fotográfico.
Não posso negar que tenho dificuldade em compreender que espetáculo é esse em que se amputa a principal arma de defesa de um animal, os seus chifres, e se o empurra para o centro de uma arena, onde, do alto de um cavalo leve, rápido e ágil, é proporcionada ao cavaleiro a posição dominante e segura para espetar bandarilhas no seu dorso. O sangue não tardará a escorrer pelo seu corpo negro, musculado e pujante. O animal, longe dos horizontes vastos em que cresceu, vai revelar um sofrimento crescente.
As touradas são a exibição pública de um confronto entre duas espécies em que há uma que sai sempre derrotada. A aparente manifestação de bravura dos toureiros é o símbolo arcaico de sociedades desiguais em que um macho dominante simbolizava a defesa contra os inimigos da comunidade, fossem eles de tribos rivais ou as próprias intempéries vindas do céu ou os abalos da terra.
O mundo mudou. Terá passado o tempo em que as touradas eram elogiadas em páginas de bela literatura. Hoje há enormes problemas ambientais com a que a humanidade se defronta. É o aquecimento global ou a extinção acelerada de numerosas espécies. Está em risco um equilíbrio planetário do qual dependemos para a nossa própria sobrevivência. Poderá parecer que as touradas nenhuma relação têm com os problemas ambientais com que nos deparamos na atualidade, mas têm tudo em comum. É a continuidade de uma atitude arrogante perante a Natureza. Assumamos a nossa condição animal. Será quando nos soubermos reintegrar, regressar, em certa medida, à Natureza, respeitar as outras espécies que connosco partilham esta casa comum, a Terra, que daremos um passo em frente num processo civilizacional que não tem regresso.
Há muitas coisas que estão mal na nossa sociedade, há tradições profundamente nefastas que urge ultrapassar. Uma tomada de consciência sobre aquilo que realmente podemos ser como espécie biológica, no contexto desta contemporaneidade, poderá conduzir-nos a uma sociedade mais livre, justa e igualitária.
Talvez apenas o conhecimento nos transporte a estados clarividentes de consciência de tempo, de espaço, de vida. O conhecimento do mundo baseado nessa fascinante narrativa que a ciência nos tem vindo a desvendar, tão sabiamente acompanhada pelas leituras da arte, da poesia, das intuições disruptivas, é uma estrada fascinante. Olhemos longe o horizonte. Projetemos viagens que não signifiquem a anulação, a destruição do outro, seja ele humano ou não. Já nos podemos libertar dessa cruel e bárbara dimensão que ao longo de milénios fez de nós a mais poderosa máquina de sobrevivência e destruição. A extinção das touradas será bom sinal para uma humanidade mais livre, para um mundo melhor.
Serra do Gerês. 1991 |
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