domingo, 22 de agosto de 2021

Agradecimentos

[Suzanne Daveau 32] Maria Fernanda Alegria, que nunca foi aluna de Suzanne Daveau mas é, talvez, quem melhor conhece a sua obra, bem como os contornos da sua personalidade, determinada e persistente. O seu acompanhamento em todas as fases da construção desta edição foi fundamental, sempre com enorme sensibilidade, atenção e rigor. 

João Ribeiro, neto de Orlando Ribeiro e herdeiro natural do saber destes dois grandes geógrafos. Sempre manifestou a mais inteira disponibilidade e entusiasmo para colaborar em todos os aspetos do desenvolvimento deste projeto expositivo e editorial. Foi quem tornou fácil o diálogo com o Centro de Estudos Geográficos.

João Abreu, coordenador e editor da Associação Museu da Paisagem, acompanhou este projeto desde o início e participou nas entrevistas que foram feitas por si e Madalena Vidigal a Suzanne Daveau, de onde foram extraídas as citações que se encontram neste volume.

Christine de Roo, que tem, junto de Suzanne Daveau, há vários anos, ajudado a organizar todo o seu espólio

Mário Vale, Diretor do Centro de Estudos Geográficos na altura em que houve um primeiro contacto no sentido da autorização de acesso ao espólio fotográfico de Suzanne Daveau e pedido de apoio e colaboração para a realização dos dois livros, este Atlas Suzanne Daveau e a reedição de O Ambiente Geográfico Natural.

José Luís Zêzere, antigo aluno de Suzanne Daveau, tendo-se especializado em geomorfologia, certamente por si influenciado. Atual Diretor do Centro de Estudos Geográficos e que, na sequência do seu antecessor, prontamente manifestou o seu apoio à iniciativa. 

Maria Inês Cordeiro, Diretora da Biblioteca Nacional, que acolheu a ideia da exposição desde o primeiro momento em que esta lhe foi apresentada. Esta forma de receber o trabalho de Suzanne Daveau é a continuidade do que já tinha acontecido, há dez anos, com as comemorações do centenário de Orlando Ribeiro, que decorreram em 2011. Uma parte do espólio de Suzanne Daveau já se encontra à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal. 

José Manuel Simões, Presidente do IGOT, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, geógrafo e editor de vários trabalhos que se focam especificamente na fotografia e na sua relação com a geografia.

Este trabalho seria certamente muito diferente se não tivesse sido acompanhado em grande proximidade por Suzanne Daveau. Sempre nos deu, autores, toda a liberdade na seleção de imagens e em qualquer outro elemento desta breve síntese. O processo de legendagem das fotografias foi um exemplo do rigor que põe em todos os aspetos do seu trabalho. A maior influência que deixa nestas páginas é, no entanto, de outra natureza. Suzanne lamenta alguma perda de memória que vai sentido com o decurso do tempo. Quem a ouve sente-se pequeno pela memória infinita de quase cem anos de vida. Transmitiu-nos a sabedoria de cada fotografia que comentava, mostrando-nos sempre mais do que a imagem que tínhamos nas mãos. Que este objeto-livro, bem como a exposição que lhe deu origem, sejam fiéis, que revelem um pouco da complexidade do seu pensamento, da sua sensibilidade, do permanente encantamento pelas paisagens onde repousamos o nosso olhar.


Suzanne Daveau, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2021

Tena, Bafora, Burkina Faso, 1959. (fotografia de Suzanne Daveau)

sábado, 21 de agosto de 2021

Biografia

[Suzanne Daveau 31] Suzanne Daveau (Paris, França, 1925) iniciou o seu percurso profissional como professora do ensino secundário em França. Mais tarde lecionou nas universidades de Besançon, Dakar, Reims e Lisboa. Tendo uma visão geral da Geografia, como ciência do Homem na Terra, desenvolveu a sua investigação sobretudo em Geomorfologia e Climatologia, Geografia Histórica e Regional, História da Geografia e Cartografia. A partir de 1965, trabalhou em estreita colaboração com Orlando Ribeiro (1911-1997). As suas principais obras são: Les Régions Frontalières de la Montagne Jurassienne (tese de doutoramento, 1959), O Ambiente Geográfico Natural (1970, 5ª ed., 2019), La Zone Intertropicale Humide (com O. Ribeiro, 1973), Distribuição e Ritmo de Precipitação em Portugal (1977), Portugal, o Sabor da Terra (com J. Mattoso e D. Belo, 1998, 2ª ed., 2010) e Um Antigo Mapa Corográfico de Portugal (2010).

Região de Limoges, França, 1940. (fotografia de Suzanne Daveau)


 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Regressar ao desenho

[Suzanne Daveau 30] O facto de Suzanne Daveau ter pousado a sua câmara fotográfica, no ano 2000, não significou que tivesse igualmente deixado de viajar. Não. Vai trocar a fotografia pelo traço lento do desenho sobre o papel branco. Em pausas de excursões organizadas, continua a procurar o entendimento das paisagens, da relação da dimensão geológica e do coberto vegetal, com o povoamento humano. É a visão de uma Geografia abrangente que nunca abandonou o seu pensamento.

Trarza, Rkiz, Mauritânia, 1960-61. (fotografia de Suzanne Daveau)

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Atlas

[Suzanne Daveau 29] Em sentido geográfico estrito, um atlas é um conjunto de mapas. O Atlas Suzanne Daveau é um conjunto de fotografias, é uma representação do seu universo geográfico, das suas viagens pelo mundo. Não se trata de uma geografia sentimental da autora, pois as fotografias não foram selecionadas por si, apenas com o seu acompanhamento. Este atlas é um mapeamento fotográfico de um conjunto de lugares e da forma como estes são povoados. Este atlas é o rosto de uma mulher, o olhar-espelho que permanece depois da sua passagem, é o saber condensado na memória de um século, a sabedoria, a força misteriosa que ainda hoje emana da sua voz. É como se Suzanne Daveau transportasse toda a determinação humana no movimento das longas caminhadas do mais remoto passado, desde que os primeiros hominídeos abandonaram um território confinado e avançaram sobre paisagens desconhecidas, na procura de lugares para habitar. Foi este planeta Terra que nos moldou como espécie ao longo de centenas de milhares de anos. Se somos capazes das maiores atrocidades contra tudo, contra nós próprios, somos também movidos por uma curiosidade sem limites, o desejo de conhecimento da realidade em que crescemos, ou daquela que, à noite, observamos num céu denso de pontos luminosos. Procuramos uma verdade palpável que não é aquela apertada por religiões ou ideologias, nem é um modo simplista de interpretar ciência como tecnologia. O atlas de Suzanne Daveau não tem limites, não são os mapas que desenhou ao longo de toda a sua vida, não são estas fotografias, é um atlas do conhecimento do espaço e do tempo. Com frontalidade e sensibilidade, sem subterfúgios, Suzanne Daveau transporta-nos, em silêncio, por “toda” a terra de um planeta fascinante.

Nouadibou, Mauritânia, 1958. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Campo de visão

[Suzanne Daveau 28] Estas fotografias são um movimento no tempo, mas não é um tempo linear. É um tempo humano, complexo, de viagens contínuas interrompidas, da impossibilidade de parar, do desejo de conhecimento, de abarcar o mundo e a sociedade. Ao voltarmos a um passado já tão remoto, transformamos a sua linearidade numa abstração. Na atualidade, com a aceleração do tempo histórico, com a vertigem introduzida pelas tecnologias digitais, por um consumo imparável de energia, pelas alterações climáticas, este passado de um século parece ficar, subitamente, inacessível. Mas permanece nestas fotografias, neste olhar sobrevivente. Há um planeta que, aparentemente, se está a transformar com uma celeridade antes não observada. Se dessa linha de tempo de 4,65 mil milhões de anos excluirmos as grandes convulsões, as extinções em massa, que transformaram de forma acentuada a vida, nunca no passado o clima terá aquecido de uma forma tão célere. O clima na Terra nunca foi estável, mas as alterações climáticas foram sempre graduais, dando o necessário tempo de adaptação a espécies biológicas, fossem elas vegetais ou animais. Estas fotografias de um século trazem-nos a memória do gelo.

Foi neste tempo mais frio, onde a velocidade era mais branda, que o campo de visão de Suzanne Daveau foi moldado, vasto e abrangente. Por oposição, hoje os olhares são mais curtos, sucintos, treinados para observar pequenas distâncias.

Importa reactivar esta relação com mundo, este conhecimento amplo e profundo, num mundo global, para a leitura dos lugares de proximidade. Na procura de recuperar um sentimento de pertença e reconstruir um sentido de responsabilidade em cuidar, de quem “carrega o mundo às costas”. É neste paradoxo entre localidade e globalidade que nos cruzamos com Suzanne Daveau e aprendemos o segredo do tempo.

 

Delphes, Grécia, 1956. (fotografia de Suzanne Daveau)

Nova Iorque, Estados Unidos da América, 1965. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Tempo

[Suzanne Daveau 27] Já foi anteriormente referido Léon Robert. São da sua autoria as imagens com que encerramos esta visita ao universo fotográfico da sua neta Suzanne Daveau. De algum modo estas fotografias fazem um enquadramento do ambiente em que cresceu Suzanne, em que a sua mãe, Denise Robert, teve um papel preponderante, quer como alguém que vai passar o saber técnico da fotografia à sua filha, quer como uma mulher de grande sensibilidade para a visualidade, para o artístico, bem como pelo desejo de viagem e de conhecimento de diferentes paisagens, particularmente os Alpes, as montanhas, espaço de distanciamento a um mundo quotidiano.

Alpes, França, 1904. (Fotografia de Léon Robert, avô de Suzanne Daveau)


domingo, 15 de agosto de 2021

Natureza

[Suzanne Daveau 26] Talvez fosse óbvio começar a apresentação do trabalho fotográfico de Suzanne Daveau pelo tema da natureza, da geografia física, que tem na sua obra uma especial relevância. Ao ternos iniciado esta exposição pela ruralidade assumimos que havia um olhar e uma sensibilidade especial para a relação que, em qualquer ponto do planeta, estabelecemos, humanos, com o espaço promovendo a sua transformação. Seguiu-se o foco sobre a própria humanidade. Daí avançamos para as cidades, a mais complexa construção humana. Agora regressamos à natureza para uma reflexão entre este porto de partida. É aqui que olhamos para trás, para as pegadas do nosso caminhar, para o cuidado a ter para não destruirmos algo que, talvez, seja o sustento da nossa própria sobrevivência como espécie.

Dolomites, Áustria/Itália, 1953. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

sábado, 14 de agosto de 2021

Cidade

[Suzanne Daveau 25] As fotografias de cidade de Suzanne Daveau são quase sempre de vistas amplas sobre estes estendidos espaços construídos. Há poucas fotografias de detalhe, de pormenores de ruas, ou da fixação de um ou outro monumento, por exemplo. São perspetivas de leitura do território, de tentativa de entendimento, numa única imagem, da relação com o espaço geográfico, com a topografia que acolhe o povoamento, que, eventualmente, justifique a opção da escolha do lugar, num tempo, por vezes, muito recuado.

Sul de França, 1955. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Processo

[Suzanne Daveau 24] Suzanne Daveau foi professora. O seu trabalho está marcado pelo desenvolvimento de processos e metodologias que se entretecem com a sua produção científica. As fichas com fotografias do Centro de Estudos Geográficos são a materialização do entendimento da sistematização do conhecimento proporcionado pela imagem fotográfica. 

Quando reunimos um conjunto alargado de fichas podemos observar, com um olhar distanciado, uma recomposição deste universo de sabedoria. É a representação gráfica de um desvio, a imagem complexa da representação, sempre incompleta, da terra, dos lugares, do tempo em permanente avanço. 



Ficha do Centro de Estudos Geográficos/IGOT. Universidade de Lisboa. [fotografia de Suzanne Daveau (S.D.)]

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Temas

[Suzanne Daveau 21] Esta abordagem ao universo fotográfico de Suzanne Daveau constitui uma interpretação concreta das imagens com que nos deparámos. Este não é um trabalho definitivo, na medida em que muitas outras leituras poderão ser feitas por outras pessoas. Este trabalho não tem um carácter monográfico. Foi nosso desejo construir um objeto de comunicação que, de algum modo consiga transmitir a força das imagens e ao mesmo tempo fazer uma ponte com a contemporaneidade, com alguns dos problemas com que a humanidade hoje se depara, nomeadamente aqueles que se prendem com a terra que nos acolhe.

Na procura de uma ordem e uma sequenciação das fotografias para a exposição começámos por desenvolver quatro grandes áreas temáticas: Rural; Humanidade; Cidade; e Natureza. Estes são os elementos que, diríamos, emanam da representação que Suzanne Daveau procurou com as suas fotografias. Na referência ao carácter científico das suas imagens, adicionámos as fichas que se encontram em arquivo no Centro de Estudos Geográficos. Um sexto grupo de imagens, Tempo, é constituído por fotografias do seu avô, Léon Robert. Considerámos ainda dois grupos de imagens que, de algum modo, são unidades “flutuantes” nesta exposição, que estabelecem relações de descontinuidade com os grupos anteriormente referidos. Há um conjunto de imagens em que estão representadas pessoas, quase sempre isoladas, que contemplam a paisagem. Nessas diferentes pessoas quase que podemos ver Suzanne Daveau a ler, perscrutar, a interpretar as paisagens. Um último conjunto de fotografias é definido por imagens que tivemos dificuldade em ligar a qualquer uma das categorias anteriormente apresentadas. São imagens, por vezes, enigmáticas e inquietantes. São descontinuidades no seu trabalho que abrem portas para outras leituras, na margem de um pensamento geográfico. 

Alpes, França, 1945. (forografia de Suzanne Daveau)

 

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Escassez e criatividade

[Suzanne Daveau 18] Esta exposição evoca, no seu final, um conjunto de imagens do arquivo fotográfico da família Daveau, cujos primeiros registos são de 1900. Há nestas fotografias uma linha de continuidade que se prolonga pelo trabalho de Suzanne Daveau. Era, também, uma marca do tempo, ou de um certo documentalismo, que, desde o aparecimento da fotografia, em 1839, até à atualidade, nunca deixou de ser praticado. No entanto, na altura, os estímulos criativos eram muito menores. A imagem fotográfica estava longe da globalização que irá acontecer um século mais tarde. A escassez era praticada como um estímulo à criatividade, à imaginação, à ambição de construir uma interpretação do mundo, enquadrada pelo seu olhar, pelo diálogo entre o palpável e o infinito.

Monte Branco (ao fundo), Alpes, França, 1920. (fotografia de Léon Robert, avô de Suzanne Daveau)

 

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Nunca voltamos para trás

[Suzanne Daveau 17] É importante olhar para estas fotografias nos dias presentes, para este mundo, para tudo o que elas nos mostram, de tempo, de cronologia, de espaço do vórtice em que estamos a entrar. Há sempre presente, nas palavras que trocamos com Suzanne Daveau, o conceito de evolução, herança intergeracional em movimento espiral, tão bem retratado por imagens que nos mostrou, nomeadamente uma em que estava representada a evolução da vida na Terra, desde a origem, numa complexidade e diversidade crescente, até à atualidade. Em continuidade, na mesma conversa, negava o conceito de “ciclo” a vida não pode ser cíclica pois nunca voltamos ao início, nunca voltamos para trás.

Serra da Estrela, São Romão, Portugal, 1967. (fotografia de Suzanne Daveau)


quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Da ruralidade

[Suzanne Daveau 16] Suzanne Daveau liga o tempo da ruralidade, quase como a época medieval — o iluminismo tivera uma dimensão sobretudo urbana — à industrialização e tudo o que se transformou a partir daí. É a ligação o tempo antigo e lento, ao quotidiano célere que hoje vivemos. Na realidade, a palavra “tempo” na sua possível dimensão filosófica ou poética, do despertar de sentimentos e realidades vividas, foi-nos sempre posta entre aspas por Suzanne, objectivamente inserindo-a no contexto da geografia e associando-a ao significado climático e meteorológico. Suzanne Daveau é esta objectividade e rigor persistente, que confere ciência em todo o seu discurso, que trabalha palavra a palavra para construir clareza e homogeneidade. Como se toda a sua vida tivesse sido empenhada na escrita de um livro.


«Se fosse unicamente para a beleza das fotografias podia continuar mas para mim a fotografia era um documento que indicava que em tal data, em tal lugar havia tal luz ou que havia neve ou que não havia neve na montanha. Era um documento científico.» (Transcrição de excerto de conversa com Suzanne Daveau).




Serra do Gerês, Portugal. 1977. (fotografia de Suzanne Daveau)

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Século e meio

[Suzanne Daveau 15] Este projeto editorial e expositivo foi construído pelo diálogo que fomos estabelecendo com Suzanne Daveau. Numa dessas conversas Suzanne mostrou-nos uma fotografia do saguão do prédio da família, na Rue de Belleville, em Paris, onde era visível o seu irmão, que estava a sair de bicicleta naquele momento. A fotografia seria do segundo quartel do século XX. Todo o ambiente era escuro. As paredes estavam sujas de fuligem. Suzanne chamou-nos a atenção para esse facto. Atualmente a cidade está muito mais limpa. Aqueles eram os tempos da industrialização de Paris, um processo que se iniciara três ou quatro décadas após o que acontecera em Inglaterra. Falou-nos igualmente da construção, no mesmo período, do sistema ferroviário e como isso levara à alteração da demografia de todo o território francês, quando muitas pessoas abandonavam os campos para se deslocarem para as grandes cidades que careciam de mão de obra para as unidades fabris. Suzanne estava a falar-nos de um século e meio de história como se tivesse vivido, presenciado todo esse enorme hiato temporal. E de alguma forma essa era a realidade. Em família, na sua infância e juventude, Suzanne, ouvia as histórias, sobretudo do seu avô, desse último quartel do século XIX e início do século XX. E depois, irremediavelmente, a presença da primeira grande guerra é uma memória muito viva e trágica que marcara a família.

Paris, França, 1937. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Filtros

[Suzanne Daveau 14] Entretanto aquela que é, talvez, a plataforma de maior partilha de imagens, o Instagram, disponibiliza uma série de filtros, digitais, para a edição rápida das fotografias. A consequência vai ser o afastamento progressivo de uma ideia fundadora da própria imagem fotográfica que é o seu carácter indicial, da fotografia como “prova” de um determinado facto ou acontecimento, o ter estado ali. A imagem fotográfica deixa de ser o registo de uma realidade exterior para passar a ser a revelação do estado de alma do seu utilizador.

Não há que fazer qualquer juízo de valor sobre esta transformação que, sem dúvida, traz complexidade e entropia ao mundo que habitamos. Voltemos a Suzanne Daveau, ao seu modo de olhar, ao mundo que nos deixa com as suas fotografias, em que as funções documental e expressiva se unem. Há uma forma de observar que está também a desaparecer e, em consequência, um vínculo a uma realidade objetiva, a um desejo de representação do mundo o mais fiel possível, que deixa de ser praticado. É a memória visual dos lugares que se tenderá a perder. Muitas das fotografias são de realidades que hoje já não podemos encontrar daquela forma. A fotografia de Suzanne Daveau ao mesmo tempo que regista um mundo à beira do seu fim, das transformações profundas a que assistimos em extensos territórios, é um ato de liberdade, uma forma de resistência e de luta pelo conhecimento. A sua fotografia é o retrato do espanto das paisagens sempre diferentes, sejam elas naturais rurais ou urbanas, pelo ilimitado surpreendente dos lugares. São fotografias que elogiam a Terra, a forma como o Homem povoou um planeta inteiro. São imagens-mapa que explicam, que ensinam, que parecem querer desvincular-se dessa própria condição de registo para se transformarem num muito mais abstrato e polissémico objeto de conhecimento.

 

Bandiagara, Mali, 1954. (fotografia de Suzanne Daveau)


Sudoeste da Mauritânia, 1963-64. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

domingo, 1 de agosto de 2021

Banalização da imagem fotográfica

[Suzanne Daveau 13] As questões relacionadas com a tecnologia associada à fotografia poderiam ser irrelevantes, mas elas transportam consigo alterações conceptuais, na forma como registamos, como observamos a realidade. A ideia de um meio de registo estável, é substituída pela vertigem das transformações sucessivas e imparáveis. Quando os telemóveis passam a integrar uma câmara fotográfica, esta técnica passa a ser acessível a qualquer pessoa, e a sua utilização já não depende de qualquer conhecimento técnico. Paralelamente a esta democratização no uso da fotografia, surgem as redes sociais na Internet. As fotografias vão ser publicadas imediatamente após a sua captura, por um número cada vez maior de pessoas. Paradigmaticamente esta partilha planetária de imagens parece reduzir substancialmente o imaginário das imagens realizadas. Passam a dominar os autorretratos, entretanto designados por “selfies”, os pratos e as bebidas, os filhos, os poucos lugares do quotidiano de cada pessoa, um ou outro pôr do sol, banalidades turísticas que possam confirmar a presença de alguém num lugar de massas.

França, 1949. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

sábado, 31 de julho de 2021

Estabilidade tecnológica

[Suzanne Daveau 12] É interessante constatar que durante todo o período em que Suzanne Daveau utilizou a fotografia não houve grandes saltos tecnológicos que afetassem o seu modo de registo. Durante todo século XX imperou a fotografia à base de sais de prata, a preto-e-branco. Mais tarde surge a fotografia a cor, mas o processo tem também como base a película e as câmaras fotográficas são as mesmas que eram utilizadas para o preto-e-branco. Houve evoluções tecnológicas, sobretudo na melhoria das câmaras fotográficas, com destaque para um progressivo aumento das velocidades de obturação e a progressiva introdução de automatismos que permitiam um uso de câmaras sofisticadas sem que fosse necessário ter conhecimentos técnicos especializados. Será só na transição do século XX para o século XXI que a fotografia digital se vai tornar acessível. Durante alguns anos as câmaras ainda vão apresentar algumas limitações, sobretudo a nível de resolução, do número de píxeis da imagem, mas todos os constrangimentos vão sendo rapidamente superados e não tardará a que a imagem digital suplante, em termos de qualidade técnica, a imagem analógica, à base de “grão” e do processamento químico.

Corinto, Grécia, 1956. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Nota Final

[Suzanne Daveau 33] Este Atlas Suzanne Daveau constitui, com a reedição de O Ambiente Geográfico Natural, um díptico que faz uma introdução sumária ao pensamento geográfico de Suzanne Daveau. São as suas palavras e as suas imagens destinadas a um público generalista. Do seu trabalho científico vasto, deixamos esta introdução geográfica ao planeta que habitamos. É uma visão clarividente, lúcida e fascinante no seu poder de síntese.

Suzanne Daveau, Biblioteca Nacional de Portugal, 2021





Humanidade

[Suzanne Daveau 23] A relação do Homem com a Terra é o campo, por excelência, da Geografia Humana. Há muitas fotografias em que pessoas são o objeto central da imagem. O trabalho de Suzanne Daveau é profundamente humanizado. As pessoas são a escala do mundo. É a sua presença que confere significação aos lugares. Estas fotografias, que relacionam o homem com a terra, apresentam um equilíbrio que é semelhante àquele que observamos em todo o seu trabalho fotográfico. Não é fácil fotografar pessoas. Mas em todo este trabalho está muito conseguido o “momento decisivo”, apesar de haver pessoas captadas em movimento, todas elas estão captadas no tempo certo, sem prejudicarem a leitura da imagem, sem concentrarem demasiado a atenção sobre outros elementos da composição do quadro.

Planalto de Bandiagara, Mali, 1956. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

Rural

[Suzanne Daveau 22] Rural é a designação que utilizamos aqui para mostrar fotografias de uma relação de compromisso das comunidades humanas com o espaço natural. São situações de habitar de alguma precariedade que remetem, em alguns casos, para tempos muito recuados, quando era necessário estabelecer um pacto, um compromisso, com o espaço onde se fixavam as comunidades humanas. Mas são também as fotografias de marcas que enunciam processos de ocupação do espaço de maior escala e visibilidade, como estradas, vias férreas, ou bairros novos associados a um processo de colonização de terras. São espaços onde a natureza mantém uma presença forte mas que são já paisagens transformadas pela ação humana.

Alto Volta, Burkina Faso, 1961. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

Caminhos da Geografia

[Suzanne Daveau 20] Entretanto a fotografia perde o seu significado no contexto da Geografia. O trabalho de campo passou a ser menos relevante no contexto de ensino da disciplina. A ciência geográfica passou para o interior de gabinetes, de salas com acesso à internet e a uma crescente quantidade de dados disponíveis, sobretudo para matérias relacionadas com o planeamento e ordenamento do território.

De um trabalho fotográfico desta natureza poderão ser feitas muitas e diferentes interpretações. Há dois aspetos que se foram consolidando na leitura destas imagens. Um deles é uma ideia de "verdade'', um ato genuíno de registo documental de uma realidade observada, sem a tentativa de procurar uma qualquer inovação estética. Não há aqui enquadramentos “ginasticados”, a fotografia pela fotografia. Há um registo de uma realidade que se quer fixar, pela sua singularidade, porque nos pode ajudar a entender uma paisagem, um gesto humano, a possibilidade de representar e partilhar esse momento. Há um segundo aspeto que parece estabelecer com este desejo documental uma relação tensa, complexa. As fotografias de Suzanne Daveau não são neutras, prendem o nosso olhar sem que, no imediato, nos possamos aperceber dessa sedução. Há, em várias fotografias, uma ideia de “movimento”, mesmo no registo de paisagens estáticas. Por vezes essa ideia de movimento, de deslocação, é conferida por um ligeiro desequilíbrio na imagem, nos seus elementos compositivos, no notar-se a ondulação de uma linha de costa, o vento em árvores ou arbustos, o cuidado que foi posto nas nuvens. Há uma ideia, quase, de cinematografia. São estes elementos, o documentalismo e esta tensão sedutora, que conferem a singularidade deste olhar em que podemos entrar com mais clarividência se lermos as suas palavras, a sua vasta produção científica. Estes aspetos afastam o imaginário banal com que, muitas vezes, são feitas as fotografias de paisagem. São imagens de pensamento, densas e intemporais. Estas fotografias prendem-nos a uma ideia de tempo presente, como se a sua descodificação nos levasse irredutivelmente à atualidade. São fotografias que, hoje, nos fazem refletir sobre o passado, sobre a forma como, humanos, estamos a transformar o território que habitamos.

 

Aludalen. Suécia, 1960. (fotografia de Suzanne Daveau)

 

Um século inteiro

[Suzanne Daveau 19] Suzanne Daveau pousa a câmara fotográfica no ano 2000, um século depois de terem sido feitas as primeiras fotografias pelo avô Léon Robert. As datas, que são apenas uma coincidência, englobam um século inteiro, “redondo”. O motivo pelo qual Suzanne Daveau deixou de fotografar foi a percepção de já não ter capacidade para fazer a referenciação e arquivo das imagens produzidas. Embora as primeiras câmaras fotográficas digitais comercializadas datem da primeira metade da década 1990, foi só no final da década que começou a ser generalizado o uso da fotografia digital. O mundo da fotografia vai então transformar-se radicalmente.


«Eu, francamente, penso que já tive uma vida muito complicada com um mundo em mudança muito rápida mas eu penso em vocês... E penso... vai ser terrível! Vocês têm de se defender da proliferação das possibilidades.» (Transcrição de excerto de conversa com Suzanne Daveau).


Chile, s/data. (fotografia de Suzanne Daveau)


Intuição

[Suzanne Daveau 11] Suzanne Daveau não teve formação académica em fotografia, mas esta fazia parte da cultura familiar. Foi aprendendo desde a sua juventude. Também não teve formação artística, nem nunca foi esse o objetivo da sua utilização da fotografia. Estes factos fazem do seu uso da imagem fotográfica algo de relevante em vários domínios. Por um lado a intuição para a fotografia, para um enquadramento cuidado, por outro a associação a uma ideia «de ciência a que, cada vez mais, a fotografia vem a ser integrada», por esta ser tão necessária para um conhecimento efectivo do território. 

A fotografia de Suzanne Daveau foi desenvolvida em paralelo com a sua carreira científica, no ramo da geografia (física e humana), bem como da sua atividade docente. Foi, é, uma incansável viajante. Nas suas fotografias todos entramos nesse interminável movimento de conhecimento do espaço e do tempo.


«Mas eu penso que as minhas fotografias podem ser uma coisa ou outra: ou podem ser um documento de um trabalho que já tenho na cabeça e junto material; ou então é mais uma pessoa que passeia, que admira uma paisagem bonita e que procura uma coisa bonita.» (Transcrição de excerto de conversa com Suzanne Daveau).


Região de Chamonix (Monte Blanc), França, 1963. (fotografia de Suzanne Daveau)


Percurso

[Suzanne Daveau 10] Não vamos aqui traçar uma biografia científica de Suzanne Daveau. Esse trabalho foi desenvolvido por Maria Fernanda Alegria e publicado, com o título GEOgrafias de Suzanne Daveau, pelo Centro de Estudos Geográficos, em 2015. Não podemos, no entanto, deixar de apresentar alguns aspetos do seu percurso. O seu mergulho na investigação científica dá-se logo após a conclusão dos estudos em Geografia quando inicia o doutoramento sobre o Alto Jura, na fronteira entre a França e a Suíça, em 1950. O desenvolvimento do trabalho foi várias vezes interrompido. Só em 1953 é que avança com disponibilidade para a investigação no terreno. Les Régions Frontalières de la Montagne Jurassienne - Etude de Géographie Humaine seria terminado na primavera de 1957. Suzanne Daveau costuma ser referida como alguém da geografia física, mas a sua formação inicial foi em geografia humana. O principal motivo para abraçar a geografia física tem uma explicação muito simples descrita pela própria Suzanne: o desconhecimento da língua dos territórios em que viria a trabalhar mais tarde, primeiro em África e depois em Portugal. Para o desenvolvimento de projetos de investigação em geografia humana era absolutamente necessário ter um contacto direto com as pessoas, ouvi-las, poder falar com elas sem mediadores. Em Portugal, onde se viria a fixar, primeiro como investigadora da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1965 e mais tarde, em 1970, como professora catedrática associada do Departamento de Geografia da Universidade de Lisboa, começou por estudar aspectos da geomorfologia e do clima, enquanto, simultaneamente estudava a língua portuguesa. 

Estes trabalhos em geomorfologia e climatologia viriam a ser pioneiros em Portugal e a formar uma escola, cujos discípulos são ainda hoje referências nestes campos e que continuam a disseminar e incentivar o estudo do território nacional. Na geomorfologia de vertentes, por exemplo, esteve ligada ao que hoje se designam por “riscos ambientais”. Introduziu o tema “clima” nos trabalhos de ordenamento do território.

A cartografia foi outra das áreas, dentro da Geografia, em que desenvolveu trabalho pioneiro, nomeadamente nas técnicas e metodologias associadas ao desenho de cartografia e leitura de mapas, na fotografia aérea e teledeteção. Foi a criadora da disciplina Cartografia na universidade, escreveu vários artigos sobre história da cartografia. 

Apesar de muito crítica relativamente à excessiva especialização a que continuamos a assistir na Geografia, como acontece noutras áreas de conhecimento, Suzanne Daveau não deixou de desenvolver trabalhos muito especializados sem, no entanto, perder a noção de uma ideia de globalidade, muito motivada pelos mestres da geografia francesa de que foi aluna em Paris durante a sua licenciatura. Foi esta perspetiva do todo que a levou a defender, promover e praticar a divulgação científica da Geografia junto de públicos não especialistas. Foi também neste sentido que, com singular acuidade, procurou a interdisciplinaridade, na ligação da Geografia à Geologia, à História, à Arqueologia, à Botânica, entre outros ramos do saber.

Após a morte de Orlando Ribeiro, em 1997, passou a dedicar a maior parte do seu tempo à divulgação do seu espólio, compilando escritos dispersos, atualizando edições, escrevendo prefácios, tornando assim acessível a um público alargado, a extensa produção científica e não só, do seu companheiro de vida ao longo de mais de três décadas.


«Sou um pouco também assim. A minha mãe dizia que quando... Vou-lhe dizer em Francês porque era assim que eu dizia, quando tinha dois ou três anos: "Je veux parce que je veux!" - "Quero fazer o que quero!" [risos] Eu não me lembro... Quando queria uma coisa que não queriam começava a chorar e a gritar "Je veux parce que je veux!". Foi-me contado isso toda a minha juventude e quando tinha dois anos. Foi em parte por isso que o Orlando e eu nos demos tão bem. Cada um de nós sabia o que queria e fez! (em parte pelo menos).» (Transcrição de excerto de conversa com Suzanne Daveau, em 2020, na preparação da exposição Atlas Suzanne Daveau).



Léon Robert, avô de Suzanne Daveau (na imagem, à esquerda), fotografando. França, 1928