terça-feira, 31 de março de 2020

Civilização comum

[Arquitetura sublimada 13] Não nos demoramos em Coimbra e seguimos para nordeste. Acompanhamos o Mondego. Subimos à serra da Atalhada. Começamos a ver uma extensa região queimada pelos incêndios de 2017. Uma paisagem desoladora. Estamos no coração de uma ruralidade interior, pobre, hoje em processo acelerado de desertificação e abandono. Há marcas de uma anterior vitalidade agrícola um pouco por todo o lado. São elementos construídos, orgânicos, adaptados a uma função, desenhados informalmente de acordo com uma necessidade concreta. Obras de quem, da terra quase sempre escassa, procurava extrair a subsistência precária e faminta. Estas são as arquiteturas de uma civilização comum, um labirinto de marcas trabalhadas pela erosão. Câmara fotográfica na mão, continuamos, Viseu já não está longe. É esta a nossa viagem. [Esta é a última publicação desta série, Arquitetura sublimada].

Serra da Atalhada, Penacova. nb2233-26. 1996

segunda-feira, 30 de março de 2020

Ciclo de tempo

[Arquitetura sublimada 12] É um enorme privilégio o entrar em determinados edifícios. Na aprendizagem da arquitetura pelo desenho mergulhamos nos detalhes, no imenso fascínio das formas, nos cruzamentos de enorme complexidade que se tecem em algumas arquiteturas, particularmente aquelas que sobrevivem a um tempo longo. Mas quando saímos e olhamos ao redor, podemos estar no coração de uma cidade. E aí, também com perplexidade, lemos e interpretamos as variadas formas de desenvolvimento das malhas urbanas, das suas singularidades e repetições em relação a outros espaços, quer sejam próximos, quer sejam distantes. E se deixarmos a cidade podemos encontrar vilas, aldeias, outras formas de fixação das comunidades a territórios. E se nos formos afastando dessas marcas mais vincadas do povoamento humano, regressamos aos lugares da Natureza intacta. Como que completamos um ciclo de tempo. Aí, de contínuo, começamos a estruturar a paisagem com o pensamento, e desvendar caminhos, formas possíveis de progressão no terreno, procurar o que está para lá de um vale, de uma montanha, o que está para lá do mundo conhecido.
Rio do Salto, Senhorim, Nelas. dg779774. 2017

domingo, 29 de março de 2020

Regresso

[Arquitetura sublimada 11] Mas agora, no regresso a Viseu de onde partíramos para a serra da Estrela, em qualquer direção poderíamos seguir caminhos interessantes. A Beira Baixa, seria uma tentação, as terras escondidas do sopé do Muradal, ou o monte-ilha de Monsanto, Idanha-a-Velha. Tantos lugares. Mas caminhamos para sul, para a Penha do Gato. Caminhamos ao longo da cordilheira montanhosa até ao alto da serra do Açor. Daqui, olhando para trás, é claramente percetível a linha que separa um Portugal do Norte das terras mediterrânicas do sul. Seguimos para as paisagens cársicas de Sicó. Passamos ao vale das Buracas do Casmilo. Depois não podemos deixar de visitar Conimbriga, uma cidade romana abandonada com a queda do império e o mergulho na Idade Média, quando os jogos de forças dos grandes impérios, neste território, haviam desaparecido. São as mudanças civilizacionais, o desgaste das sociedades que não encontram um ponto de fuga à degradação. Hoje um campo arqueológico fala-nos desse passado. Prosseguimos. Antes do atravessamento do Mondego paramos em Santa Clara-a-Velha. Um antigo mosteiro, agora monumentalizado, que fora abandonado devido ao assoreamento do leito do rio Mondego e à progressiva subida do nível das águas ao longo dos séculos. Qualquer destes lugares traz memórias antigas que ficaram em fotografias. Em 1987 duas crianças brincavam com uma jangada naquele singular lago coberto por uma arquitetura gótica.
Vale das Buracas do Casmilo, Penela. dg856827. 2018

sábado, 28 de março de 2020

Imagem contemporânea

[Arquitetura sublimada 10] No contemporâneo infinito mundo das imagens, tudo parece estar fixado, todos os acontecimentos registados. Mas esta leitura é uma ilusão. Apenas parece termos acesso a parcelas mínimas dessa mesma realidade. Apesar de atualmente um número muito significativo de pessoas transportar consigo um telemóvel, que é também uma câmara fotográfica, acabam por ser poucos os acontecimentos, inesperados, relevantes, que vão ser cobertos, de forma significativa, pela imagem fotográfica. Apenas restam fragmentos, que por vezes, se tornam ícones, de um determinado facto. Mundo de janelas estáticas. Na vivência de um tempo concreto, o próprio corpo recebe uma imensa quantidade de estímulos, de sinais, através dos sentidos, que são impossíveis de fixar. É o presente em permanente fuga que nenhum instrumento consegue fixar, que nenhum documentalismo fotográfico é capaz de reter. A perceção desta impossibilidade é um estímulo para trabalhar a mensagem e novas formas de linguagem. Quase como integrar nos nossos fazeres a descodificação do contra-intuitivo que nos é revelado pela ciência do infinitamente pequeno. É este o mundo labiríntico do detalhe que se abre quando nos deparamos no diálogo com a realidade, com a procura de respostas a inquietações irrecusáveis.
Convento de Santa Clara-a-Velha, Santa Clara, Coimbra. dg514434. 2015

sexta-feira, 27 de março de 2020

Desvinculação

[Arquitetura sublimada 09] O caráter indicial, documental, das imagens ajuda-nos a construir uma ideia temporalidade, da evolução do espaço e da sociedade ao longo de permanências e fraturas. Há uma mundividência própria que é criada pelas fotografias, como se estas se desvinculassem do fotografado e trabalhassem uma realidade aumentada, um reflexo de afastamento, como se agora o pudéssemos habitar, longe das contingências e urgências erosivas do quotidiano. São as muitas formas de procurar a representação de um país, retratos complexos para o entendimento de um solo que está permanentemente em fuga, em transformação célere.
Convento de Santa Clara-a-Velha, Santa Clara, Coimbra. nb0114-03. 1988

quinta-feira, 26 de março de 2020

Diferentes e distantes

[Arquitetura sublimada 08] Entretanto, nesta prática de mapeamento fotográfico do território português, há um arquivo que se gera e que constantemente cresce. E este arquivo é uma unidade de vida no contexto do trabalho diário. São fotografias que se revisitam em vários momentos, que fazem parte de projetos em construção. Quando, com um olhar mais distanciado, observamos a espessura deste lastro de imagens, podemos fazer uma analogia com uma cidade. Um arquivo como cidade. Percorremos as suas ruas e praças, entramos em edifícios, observamos os detalhes das casas. Saímos, vemos paisagens imaginárias onde diferentes e distantes lugares estão agora tão próximos, estimulando relações topológicas inusitadas.
Conimbriga, Condeixa-a-Velha, Condeixa-a-Nova. nb2529-39. 1996

quarta-feira, 25 de março de 2020

Arquitetura sublimada

[Arquitetura sublimada 07] A Fotografia constrói sem deixar rasto nos solos que atravessa. É arquitetura sublimada no modo como cria um imaginário de habitação, entendido em sentido alargado, sonhos tornados realidade. Estimula o movimento, mas, não nos iludamos, é, muitas vezes, truque. Nada substitui a condição de caminhante, do ato da recolha, do trabalho em campo aberto. É a vivência dos lugares, a articulação do corpo com o espaço e o tempo de situações concretas, que definem o próximo passo, a direção por que optamos quando o caminho se bifurca. A seleção, aparentemente simples, de seguir uma e não outra vereda, será a escolha entre diferentes infinitos.
São Pedro do Açor, Piódão, Arganil. nb1821-21. 1996

terça-feira, 24 de março de 2020

Relevo

[Arquitetura sublimada 06] Paisagens, detalhes, elementos perdidos, outros contraditórios, pequenas ironias, a subtileza de um traço, o polimento de uma superfície trabalhada pelas enxurradas fluviais, os monumentos e os mais subtis relevos da pedra. O expectável e o insólito, o espanto da vida vegetal ou os solos calcinados, as micro paisagens ou um inteiro território vasto. São as escalas de leitura do espaço, que se transformam em modos de interpretar o visível.

Covão Cimeiro, Serra da Estrela, Manteigas. dg859283. 2018

segunda-feira, 23 de março de 2020

Ambiguidade

[Arquitetura sublimada 05] Há todo um processo que se aprofunda, que é puxado por situações concretas, pela resposta a solicitações e especificidades, muitas vezes num jogo de afastamento a procedimentos convencionais, ou convencionados. Entramos no território ambíguo da liberdade. Uma força estranha estimula o movimento, leva-nos para a frente, empurra-nos. Seguimos essa intuição. É o grande jogo da existência, o diálogo com o futuro. Com uma câmara fotográfica registamos todos os passos. Deixamos um rasto de sentido, uma linha de vida. Partilhamos experiências, defendemos uma ideia de verdade, recusamos a facilidade de certas imagens, os truques imediatos da edição da fotografia digital.
Barros Vermelhos, Serra da Estrela, Loriga, Seia. nb0474-06. 1990

domingo, 22 de março de 2020

De silêncio

[Arquitetura sublimada 04] Esta é uma forma de fotografar. A fotografia é um modo de relação com a paisagem, um ato performativo, quase uma dança de silêncio, pés no solo, cabeça ao alto. Mas a fotografia é, também, um veículo de transporte e comunicação. As imagens deixam de ser “objetos” isolados, para se aproximarem de uma ideia de alfabeto, de frase, de texto composto, mensagem que existe fora da sua própria forma, do seu desenho. Mais do que representam, as fotografias são a vertigem do tempo contemporâneo, de uma urgência de fusão entre arte, poesia e ciência, mundo quântico, partículas explodidas em viagem aleatória pelo cosmos.
Covão Cimeiro, Serra da Estrela, Manteigas. dg859636. 2018

sábado, 21 de março de 2020

Toda a terra

[Arquitetura sublimada 03] O que fica destas viagens? Que memórias permanecem? Que pessoas entram e saem desta caminhada? Que lugares ficaram para trás? Como se transformou toda a terra? A enorme quantidade de fotografias que pontualmente faço é como que este desejo de responder a todas as perguntas, é o não deixar nada para trás, é o duplicar o real, fixá-lo, transportá-lo para um futuro imóvel, para um tempo que parou. O que encontro nas fotografias de 1990 da serra da Estrela, é já a perda da memória, o tudo que vivi e que não ficou fixado nas imagens, de que hoje quase nada permanece. Desejo de fixação, impossível, do tempo que passa, da transformação dos lugares. As fotografias tentam ser, numa fração de segundo, espaço e tempo e o procurar compreender o que é tudo isto que vemos, quem nos ergueu há milénios nesta nossa condição de passagem.
Cântaro Raso, Serra da Estrela, Manteigas. dg860328. 2018

sexta-feira, 20 de março de 2020

Estrela

[Arquitetura sublimada 02] A Serra da Estrela é um lugar especial. Invernos demasiado agrestes impedem a fixação permanente de comunidades humanas nesta montanha. São hoje lugares raros em Portugal, em que cada vez mais há a necessidade de deixar marcas nas paisagens, perdendo-se a referência de um espaço anterior ao povoamento humano. No extenso arquivo fotográfico que se vai tecendo revisitamos algumas fotografias antigas. Encontramos um conjunto de imagens da serra da Estrela. O dia 4 de agosto de 1990 era a data da primeira fotografia. A última era feita cinco dias depois, a 9 de agosto, já no lado poente da serra. Tinha sido a minha primeira ida àquela montanha. Daí para cá várias vezes subira ao topo do planalto central. Estava ali agora quase trinta anos depois e ao redor tudo parecia permanecer, como se nunca tivesse dali saído mas apenas viajado no tempo. Este é um percurso de circularidades, de perdas, ganhos, partidas, reencontros, sítios em transformação.
Penha dos Abutres, Serra da Estrela, Loriga, Seia. dg369719. 2013

quinta-feira, 19 de março de 2020

Fotografar

As publicações que se vão seguir resultaram de um texto que me foi solicitado para integrar a Revista Património, nº6, recentemente dado à estampa. A ideia foi a de refletir, a partir da minha prática específica da fotografia de mapeamento do território e da arquitetura, sobre o conceito de património. O texto teve como título "Arquitetura sublimada - a construção da fotografia".

[Arquitetura sublimada 01] Passavam poucos minutos das 6 horas da manhã do dia 4 de setembro de 2018. De Viseu partia para a serra da Estrela. Ali tinha estado poucos dias antes em registos de paisagem, com um grupo de trabalho que desenvolve um projeto de criação de um museu da paisagem, destinado à Internet (http://museudapaisagem.pt/). Nessa altura, embora tenha passado muito perto, não me tinha sido possível fotografar, com a devida demora, o Covão Cimeiro. O objetivo deste regresso era apenas esse, descer ao Covão e fotografar alguns dos notáveis afloramentos graníticos que ali acontecem. Ao chegar à serra, à Torre, um nevoeiro denso fez-me hesitar. Com uma visibilidade que ali não excederia os 50 metros, sentia que poderia ter sido em vão aquela deslocação. Desci, de carro, até à curva da estrada que mais se aproxima do Cântaro Magro. Eram 7h27m quando fiz as primeiras fotografias. As nuvens deslocavam-se rapidamente empurradas por um vento moderado permitindo boas perspetivas em horizontes entrecortados. Subi mais um pouco, mais algumas fotografias do Cântaro bem como do Covão Cimeiro, numa vista distante. Regressei depois à Torre. Estacionei e avancei para o meu destino. O nevoeiro mantinha-se, ali, bastante denso. Ao fim de, talvez, uns duzentos metros percorridos, voltei para trás. Iria tentar uma nova abordagem. Vou com o carro até ao acesso às pistas de ski, que estavam ocupadas por vacas a pastar. A esta cota, cerca de 1900 metros de altitude, a visibilidade já me permitia avançar. Era a quarta paragem, que se iria prolongar por mais de 7 horas de recolha fotográfica contínua. Percorri então o topo do Cântaro Gordo, depois desci ao Covão Cimeiro, para regressar depois de novo ao carro. Tinha, no fim desse hiato temporal, feito 1941 fotografias. Daí em diante ainda faria mais três paragens. Uma ida ao Cântaro Raso, outra à Torre, já sem nevoeiro, e uma última ao Corvo da Talada. A última fotografia foi feita às 20h21m55s. Estes eram os dados dos ficheiros da câmara fotográfica digital. Em sete deslocações para recolha fotográfica, ao longo do dia, somaria 12h53m58s de tempo de trabalho. Durante este período fiz 3.372 fotografias. Se ao tempo total subtrair as várias paragens, quer aquelas que fiz de carro, quer outras para descanso e alimentação, pausas estas, num total de 12 que somaram 1h27m51s, fico com 11h44m de recolha fotográfica. Dividindo o número total de fotografias por este período obtém-se 4,91 imagens por minuto, ou uma fotografia por cada 12 segundos e 35 centésimos.


Percursos realizados. Excerto da Carta Militar de Portugal, 1/25.000,  nº223 - Instituto Geográfico do Exército

Quadro de fotografias feitas e relação com as deslocações.
Provas de "contacto" das 3372 fotografias realizadas.