segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Último lugar

[Douro-Côa 17] Deixava um lugar secreto, como se nestas micro paisagens de espanto encontrasse uma representação de um planeta inteiro, mesmo do universo. Aqui o espaço perde a sua especificidade para se transformar numa abstração. O rio, o Côa, o Douro, Massueime, é como uma via láctea, uma enorme constelação de pontos que precisamos de conhecer para descodificarmos as dimensões do espaço e do tempo da nossa existência. Como se aqui encontrássemos o último lugar. Esta é a última publicação da série Douro-Côa. 
Penascosa, Almendra, Vila Nova de Foz Côa. 1995

 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Massueime

[Douro-Côa 16] Chegado à foz da ribeira de Massueime, enveredei pelo seu vale, primeiro a uma cota elevada, depois consegui descer para o leito. Estava agora com a sensação de um profundo isolamento, acentuado pelo declive das margens. Havia momentos em que a única possibilidade de progressão ribeira acima era pela água. As dificuldades foram-se avolumando com o passar das horas. A dado passo não via o fundo da ribeira e o subir as margens não era uma possibilidade. Pousei as minhas coisas e fui testar a profundidade. Rapidamente fiquei sem pé. Regressei a nado ao ponto de partida. Terminava neste ponto a tentativa de progressão pela ribeira. A saída daquele canal fluvial não foi fácil. Só à terceira tentativa é que consegui dar com um trilho que seria certamente de javalis. Era como um labirinto vertical, aquele em que me encontrava. Simultaneamente, a dureza da jornada, parecia aproximar-me de um significado mais profundo das gravuras. Foi como se por momentos tivesse regressado ao tempo da sua feitura, a uma natureza intacta, incompreensível, hostil, muito longe desta contemporaneidade das cidades maiores.
Ribeira de Massueime, Santa Comba/Cidadelhe, Vila Nova de Foz Côa, 2020

 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Cardina

[Douro-Côa 15] A abordagem ao rio Côa foi fundamentalmente diferente. Recorri a um conjunto de fotografias de arquivo, sobretudo de 1995, das gravuras e do seu contexto paisagístico. Mas não quis deixar de regressar. A partir de Tomadias tentei aproximar-me, de carro, o mais possível do rio. Deixei a viatura num ponto alto, pois daí para baixo já não tinha a certeza de conseguir voltar, o caminho deteriorava-se bastante. Desci até às margens do rio, até ao sítio da Cardina, ou Salto do Boi. Continuei a caminhada para montante pelo leito do Côa cujo caudal era muito fraco neste mês de julho de 2021. Continuei a fotografar impressivas formações rochosas polidas por milhares de anos de correntes fluviais. Pontualmente encontrava vestígios de presença humana.

Cardina, prox., Santa Comba, Vila Nova de Foz Côa, 2020

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Côa, depois

[Douro-Côa 14] Há nestes dois conjuntos de fotografias, do Douro e do Côa, duas posturas diferentes, mas que acabaram por convergir numa mesma ideia de relação com a terra, com os lugares, com a tentativa de os representar pela imagem.

 

Rio Côa, Algodres, Vila Nova de Foz Côa, 1996

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Rio abstrato

[Douro-Côa 13] Este é o grande vale do Douro. Estamos como que num lugar secreto muito afastado do seu caudal principal. Era como se nestas micro paisagens de espanto encontrasse uma representação de um planeta inteiro, mesmo do universo. Aqui o rio perde a sua especificidade para se transformar numa abstração. O rio é como uma via láctea, uma enorme constelação de pontos que precisamos de conhecer para descodificarmos as dimensões do espaço e do tempo da nossa existência, ou a chave para a pacificação dos dias vindouros. É como se aqui encontrássemos o "último" lugar, que, percebemos então, não é uma terra, um sítio determinado, mas o encontro do tempo com o espaço numa única dimensão.

Serra da Porreira, Poiares, Freixo de Espada à Cinta, 2019

 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Ilha

[Douro-Côa 12] Prossigo viagem. Desloco-me para uma "ilha" duriense ainda mais afastada do grande rio. Desço à Ribeira de Carvalhais num desvio à estrada nacional 15 na direção de Vila Verdinho. Detenho-me antes da ponte. Estaciono o tento descer ao fundo do vale. Está um sol intenso e muito calor. A ribeira corre ao longo de uma galeria ripícola com árvores de porte grande, que produzem uma sombra densa e um ambiente fresco sonorizado pelo suave correr das águas.

Quinta do Monte Meões, prox., Vale de Couce, Romeu, Mirandela. 2019

 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Vias ferroviárias

[Douro-Côa 11] Trezentos metros de desnível acima do ponto de partida, onde deixara o carro. Regresso. A descida é quase sempre mais difícil do que a subida. Antes de me sentar de novo ao volante, observo o mapa para estudar o acesso a um próximo ponto que quero explorar. Desloco-me para norte de Mirandela. A paisagem é marcada por extensos olivais. Paro não longe de Carvalhais, junto a um edifício abandonado que apoiava a Linha do Tua. Sigo alguns metros por este antigo canal ferroviário até uma ponte metálica. Tinha estado neste mesmo local dez anos antes aquando de um levantamento fotográfico deste itinerário ferroviário. A ponte estava com sinais mais evidentes de degradação e a vegetação ao seu redor, mais desenvolvida. Este é apenas um pequeno fragmento desta linha ferroviária que, por sua vez, integrava um conjunto de outras linhas construídas entre o século XIX e o século XX, e hoje todas abandonadas. Apenas permanece a linha do Douro, já amputada do troço entre o Pocinho e Barca d'Alva. A ferrovia foi uma das mais importantes marcas identitárias deste extenso território.

Senhora de Lurdes, Nagoselo do Douro, São João da Pesqueira. 2019


 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Faro distante

[Douro-Côa 10] Deste vértice geodésico (Faro: 41.367436, -7.191040) posso observar, a poente, o rio Tua, Vilarinho das Azenhas e o santuário de Nossa Senhora dos Remédios. Para sul não consigo ver Vilas Boas, mas num outro ponto elevado deste complexo montanhoso, vejo com clareza o santuário da Senhora da Assunção, um dos mais importantes lugares sacralizados de região. Para poente impõe-se a serra de Bornes e para norte as terras continuam a elevar-se em afastamento ao rio Douro, o clima arrefece, é a Terra Fria transmontana. Este é um dos pontos mais elevados deste imenso labirinto que é definido pelo Douro vinhateiro. É um lugar que articula paisagens diferentes, que nos mostra a imensa complexidade desta paisagem. O grande rio não é daqui visível, mas pressente-se o seu caudal no desenho desta paisagem, das terras com uma ligeira inclinação para sul e, nessa direção, na linha de céu, é já visível a margem oposta do rio e as terras serranas e planálticas da Beira Alta que ajudam a definir a singularidade climática desta imensa concha interior.

Serra de Faro, Vilas Boas, Vila Flor. 2019

 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Tomar o topo

[Douro-Côa 09] O declive é acentuado, enormes penedos estão dispostos aleatoriamente ao longo de um percurso em que não é fácil encontrar um trilho, a vegetação, em giestas, carqueja e esteva, é relativamente densa. Embora ainda seja cedo, está calor. A subida é dura, obrigando a frequentes paragens para descansar e tentar encontrar uma via de acesso ao cume. Quando chego ao marco geodésico, meio arruinado, olho ao redor, sobre uma paisagem muito abrangente. Estou apenas a 822 metros de altitude, no ponto mais elevado da serra de Faro. Embora o topónimo faça lembrar a cidade algarvia, estamos longe do Algarve, mesmo que alguns aspetos desta paisagem pareçam evocar terras muito mais a sul. Este lugar alto fica próximo de Vilas Boas, no concelho de Vila Flor, na região demarcada do Douro.

Serra de Faro, Vilas Boas, Vila Flor

 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Pulsão

[Douro-Côa 08] Regressar a uma paisagem, ao longo de anos, é perceber como tudo muda. Mas há sempre lugares novos para conhecer, um vale que se esconde para lá das curvas da estrada, ou um ponto elevado a partir do qual conseguimos estabelecer novas relações topológicas entre lugares próximos e, simultaneamente, distantes. É o conhecimento da terra que move, no fundo, esta pulsão fotográfica, do registo obsessivo de uma realidade que permanentemente se escapa a qualquer imagem, a qualquer tentativa para a fixarmos, para transformarmos matéria em linguagem.

Numão, prox., Vila Nova de Foz Côa. 2019

 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Cores falsas

[Douro-Côa 05] Quando nos afastamos desta frente ribeirinha, das imagens “postaleiras” de cores falsas das fotografias, ouvimos o silêncio velado e podemos observar os mais singulares detalhes de uma paisagem labiríntica, seja ela construída por mãos resilientes e duras, seja o espaço esquecido, ou inacessível, de uma natureza intacta.

Vale do rio Tinhela, Martim, Candedo, Murça. 2019


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Trepidação

[Douro-Côa 04] Mas há quem procure o rio em busca da identidade deste singular território erguido em séculos de escadaria de geios. Ao som dos motores e da trepidação das embarcações, centenas, milhares de turistas, sobem e descem um rio domesticado em sucessivos patamares definidos por albufeiras de barragens.

Vale do rio Corgo, Alvações do Corgo, Santa Marta de Penaguião. 2019

 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Lugares novos

[Douro-Côa 07] Depois de décadas de viagens por esta paisagem, procuramos lugares novos. Num mapa anotamos alguns pontos, resultantes de pesquisas bibliográficas, iconográficas, ou pela simples análise de cartografia ou imagens de satélite. Depois partimos para o terreno e não tardará a sermos surpreendidos pelas formas e superfícies do tempo que pousam sobre este solo.

São Pedro das Águias, prox., Granjinha, Tabuaço. 2019

 

Canhões

[Douro-Côa 06] Há vales que definem imponentes canhões fluviais, vinhas abandonadas, mortórios, lugares periféricos ligados por estradas de terra, lajeadas, de asfaltos antigos ou trilhos pedestres quase apagados. Percorremos mundos fabulosos de uma natureza cintilante. É como se aqui, numa escala reduzida, encontrássemos o Douro primordial, livre do betão das suas barragens, águas transparentes, vegetação entregue à sua própria ordem evolutiva, marcada pelo ritmo lento das estações do ano, ou as conversas com as pessoas, na língua que construiu a narrativa destes lugares.

Rio Tinhela, Martim, Candedo, Murça. 2019

 

Visão de velocidade

[Douro-Côa 03] Hoje quando “sobrevoamos” o Douro pela autoestrada A24, são breves os segundos em que podemos ter algum contacto visual com as águas do rio. É como se a velocidade tivesse o poder de o fazer desaparecer.

Nogueira, prox., Vila Real. 2019

 

 

Peso da Régua

[Douro-Côa 02] A estrada nacional 2, ao ligar Lamego a Vila Real passando pela Régua, embora se tenha definido como um importante eixo viário, não viria a alterar esta situação das difíceis ligações ao litoral, para o transporte das barricas de vinho. Seria a construção da linha ferroviária do Douro que transformaria significativamente as condições de acesso ao país do vinho. Em Peso da Régua permanecem as memórias de todo este tempo, onde a estação ferroviária e as três pontes são a imagem e o símbolo do coração de uma região que se abre na direção do sol nascente.
Tanha, prox., Alvações do Corgo. Santa Marta de Penaguião. 2019

 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Navegação fluvial

[Douro-Côa 01] Em tempos recuados, na época pombalina, havia apenas caminhos de terra, alguns empedrados, e carroças a sulcar as margens do rio, entre vinhedos, nas labutas diárias relacionadas com a viticultura. O escoamento do vinho, para as caves de Vila Nova de Gaia, era feito pelo rio Douro e estava sujeito a condições climatéricas instáveis, que, por vezes, eram muito adversas. A navegação dos barcos rabelos, para montante, embora viessem com menos carga, era especialmente difícil e, muitas vezes, eram usados os trilhos da sirga, com as embarcações a serem içadas, rio acima, com a ajuda de animais, ou mesmo de pessoas.

Ponte Velha, prox., Murça. 2019



 

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Ser aluno

[Botelho 04] Estas palavras e estas fotografias não podem deixar de ser uma interpretação pessoal e a manifestação de perplexidade perante um reencontro inusitado. Conheci Manuel Botelho há 35 anos. Fui seu aluno no meu primeiro ano do curso de arquitetura na Universidade do Porto, no ano letivo de 1986-1987. Era professor de Projeto, a mais importante cadeira do curso. Com Manuel Botelho éramos, seus alunos, conduzidos pela descoberta do desenho, pelas possibilidades quase ilimitadas da forma arquitetónica, do jogo de volumetrias, pelas complexas relações espaciais com que temos que lidar. A maior parte de nós entrava ali num mundo desconhecido, belo, difícil e apelativo. Éramos levados pela incessante procura de uma ideia de clareza, de ausência de ruído, da imensa nobreza, solenidade mesmo, da obra arquitetónica, onde não faltava a interrogação, elementos de descontinuidade, a perturbação intencional da ordem óbvia. 

Manuel Botelho em Pavia, Mora. 1987

 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Báculos

[Botelho 03] Os báculos são elementos-síntese da obra de Manuel Botelho. São a sublimação do desenho em peças que têm um carácter de fina simbologia no contexto do cristianismo. É do cajado de que se serve para conduzir o rebanho, o báculo é o elemento identificador do pastor. Em campo aberto, pode ser também uma arma de defesa contra os lobos ou outras feras que aportem perigo. É uma peça luminosa que faz a assunção da diferença do seu portador perante a comunidade. É um símbolo primordial de humanidade. O extremo cuidado que Manuel Botelho coloca no desenho dos báculos é a sublimação da sua arquitetura, de um desenho que se desprende de uma funcionalidade imediata e se transforma em linguagem de singularidade.

Báculo de Dom Jacinto Botelho. dg1077486. 2021

Báculo de Dom António Couto. dg1077598. 2021

Báculo de Dom António Francisco dos Santos. dg1079088. 2021

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Entre a matéria e o pensamento

[Botelho 02] Há, na obra de Manuel Botelho, um movimento subtil. Há um transporte para fora da arquitetura, ou, para uma descentralização desse conceito disciplinar. Uma reflexão filosófica, de extrema liberdade, sobre a linha difusa, ténue, que separa matéria e pensamento. Interrogação sobre o espaço e o tempo do habitar humano, sobre uma condição de ser e de estar. Há, nesta arquitetura, uma ideia de jogo materializado no requinte do desenho, na subtileza estranha de um gesto inusitado que percorre todas as escalas. Esse jogo é o caminho da procura infinita, ou apenas detida pela necessidade de impor limites, que são as peças finais do projeto de execução. É um jogo sem regras, aparentemente estranho, individual. O tabuleiro é o território. Ou uma cidade que não é apenas feita de edifícios, ruas, jardins, que está para além das formas, da matéria, que é o desenho do futuro, sempre aberto e imprevisível, elaborado com a inquietante obsessão da materialização do indizível.

 

Casa do Poço, Lamego. dg1076622. 2021

Casa de Valadares, Vila Nova de Gaia. dg1074103. 2021

Casa do Porto. dg1070731. 2021