quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (8/8)

Casaco de Orlando Ribeiro. Vale de Lobos. 1997


O que eu encontrei na casa de Vale de Lobos, aquilo que procurei pela fotografia, foi o sentido de uma vida austera que era revelada por cada objecto, por cada peça de vestuário, por cada elemento aparentemente insignificante que povoava aquele espaço. Era uma vida quase despojada de matéria, centrada no prazer do conhecimento da diversidade dos lugares, do processo histórico de povoamento do espaço e das formas como a fixação de comunidades humanas se integrava e se adaptava a paisagens e a condicionantes climatéricas previamente existentes. Não havia excesso, luxúria ou qualquer género de ostentação: talvez isso o afastasse da proximidade que queria ter com um mundo essencial que encontrava nas suas pesquisas de campo, fosse numa cidade de interior, numa pequena aldeia da serra, nas planícies do sul, em tantos outros lugares, ou no "bosque de sombras perfumadas", expressão usada por Orlando Ribeiro para descrever a serra da Arrábida, um último reduto da floresta mediterrânea, que nos remete para a vivência significante das paisagens, da relação humana que com elas estabelecemos, mas também para o sentido da permanência, ou o habitar de um universo singular e fascinante.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (7/8)

Serra das Meadas. Lamego. 1996


Esta ânsia de conquista, quantas vezes absurda, é acompanhada por um galopante consumo de energia, que se vai procurar em todos os lugares da Terra. País pobre em combustíveis fósseis, Portugal procura nos rios uma fonte de energia, através da construção de barragens, para alimentar de electricidade os grande aglomerados urbanos. São também construídas centrais termoeléctricas, permanecendo a recusa sensata do nuclear. As barragens representam já uma significante intervenção no território, particularmente as de maior dimensão. Mas este processo desmedido e continuado de procura de energias limpas, continua. O poder político orgulha-se, actualmente, das centrais eólicas, que são construídas um pouco por todo o lado. A sua fraca produtividade em relação às necessidades de consumo humano, leva a que o seu número seja cada vez mais elevado. Numerosos locais, nomeadamente serras de média altitude, como que reservas de paisagens íntegras, são devassadas por estradões que rasgam acessos onde, no passado, apenas se podia aceder através de caminhadas demoradas. Esta procura da invisível energia simboliza a conquista desregrada de todo o solo disponível de uma Nação. Assiste-se a um generalizado empobrecimento do território ,a favor de uma uniformização das paisagens. A terra que pisamos é, seguramente, o último reduto e o mais sólido alicerce da vida neste planeta. Cada vez mais nos afastamos do significado profundo e do sentido de um habitar humano. O desenvolvimento imparável das cidades, e o enraizamento cada vez mais fundo da era digital, promovem, também, o afastamento do mundo físico concreto e da espantosa diversidade de lugares e formas de vida do planeta. Talvez fosse este um dos aspectos que mais desalentava Orlando Ribeiro que, em alguns escritos no fim da sua vida, denota uma certa tristeza com o rumo que esta nova face da humanidade está a encetar. Assistia à perda de um mundo milenar e ao desaparecimento de uma sabedoria solidamente edificada por gerações e gerações de trabalho árduo, continuado e de um nunca baixar de braços perante todas as adversidades. (continua)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (6/8)

Fontelo. Viseu. 2011


Neste progressivo afastamento da terra, e do nosso próprio planeta Terra, a relação com a Natureza torna-se cada vez mais pobre. As populações refugiam-se nas cidades, que vão crescer continuamente, espalhando-se pelo território como uma mancha de óleo, aproximando-se entre si neste processo, através de eixos viários de tráfego intenso e rápido. O advento e generalização das tecnologias digitais, vai trazer mais um motivo para que um mundo que num passado recente era pouco acessível se torne, ilusoriamente, próximo, através de diversos suportes informáticos. Deixa de haver uma vivência efectiva de espaço sensorial rico e diversificado, para a sua experienciação ser intermediada por diversos aparelhos de ecrã luminoso. Substituímos a textura das árvores, das pedras, as diferentes águas, o calor do fogo numa noite fria de Inverno, ou o escutar de uma trovoada no isolamento de uma montanha - um som poderoso e forte que nos desafia em medo, mas que nos liga a uma cosmicidade inquietante - por imagens em movimento visualizadas em ecrãs luminosos. (continua)

domingo, 13 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (5/8)

Serra da Estrela. 1997



No livro que fiz sobre Orlando Ribeiro, anteriormente referido, propus uma viagem breve à serra da Estrela. Depois de ver numerosas referências àquele maciço montanhoso, escritas, fotografadas e desenhadas, e das conversas com Suzanne Daveau, sabia ser aquela uma região especialmente admirada por Orlando Ribeiro. Nas primeiras visitas científicas à Serra seguia o trilho de pastores e carvoeiros; não havia outros acessos que não aqueles feitos a pé ou de burro. Mais tarde seria construída a estrada de ligação à Torre, que terá sido interpretada por Orlando Ribeiro como um gesto arrogante e desnecessário por parte das entidades que tomaram aquela iniciativa. Era uma perversa conquista da civilização: em torno do vértice geodésico mais elevado do território continental português, foi construída uma rotunda. Uma rotunda no ponto mais elevado de Portugal. Uma rotunda que não alimentava o escoamento de tráfego urbano, mas parecia simbolizar o caminhar ininterrupto num vazio circular, andar sobre si próprio num tempo imóvel, o Portugal de então. Hoje, esse traçado fundamentalmente urbano, poderia ser lido como uma metáfora da expansão de um povoamento desregrado, que se libertava de condicionantes milenares e anunciava um novo período histórico, dominado por meios de locomoção muito mais velozes. (continua)

sábado, 12 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (4/8)

Casa de Orlando Ribeiro, em Vale de Lobos. 1997


A obra de Orlando Ribeiro surge como um ponto de luz num oceano de escuridão. Há momentos em que um mundo, aparentemente desconexo, ganha uma coerência maior na reunião clarividente de diversos saberes dispersos e fragmentados. O olhar de Orlando Ribeiro encerrou a tranquilidade de uma paisagem estável, antes de um tremor de terra. A sua escrita ficou como uma fotografia de um mundo que se transformará num tempo breve. No seu olhar sobre Portugal, há a pureza e a genuinidade de uma ideia simples. Depois da sua leitura fica-nos o contentamento de um mundo que apreendemos, fica a sedução de uma linguagem de forte poder comunicativo, uma prosa que se solta do espartilho de um discurso científico. Tal como os seus desenhos, onde a ausência do detalhe fotográfico nos transporta para um tempo secular, também a sua interpretação sobre Portugal ficará como a síntese de dois mundos: o Mediterrâneo e o Atlântico. O pensamento de Orlando Ribeiro acrescenta sentido, clarifica e representa uma sólida pedra no edifício do conhecimento de Portugal. (continua)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (3/8)

Botas de campo de Orlando Ribeiro, fotografadas em sua casa, em Vale de Lobos. 1997


Esta visita, este contacto com Orlando Ribeiro e com a sua obra, não mais me abandonaria e iria funcionar como uma memória de referência em muitos dos trabalhos que desenvolveria num futuro em que não mais deixei de percorrer Portugal. Quase vinte e cinco anos passaram sobre o meu primeiro contacto com a obra de Orlando Ribeiro. Regressei a Portugal - O Mediterrâneo e o Atlântico, e é com renovado espanto que releio o texto, agora que o território português sofre alterações cada vez mais profundas e mais aceleradas. Orlando Ribeiro mostra-nos um mundo à beira da sua própria implusão. Era o fim de uma realidade rural e arcaizante e o advento de um tempo diferente. Era o fim de uma cultura milenar de relação com a terra. A escrita, mas também as fotografias, mostravam-nos um mundo de relação próxima com a terra, um mundo em que, enredado numa evidente pobreza e austeridade, parecia, a seu modo, perfeito, integrado numa harmonia cósmica, pleno de sentido pela forma como se agarrava aos ciclos dos dias e das noites, da sucessão dos anos. Os seus textos descrevem-nos uma realidade humanizada e singular, mas também o sentimento de uma mudança eminente. Um dos maiores fascínios da sua obra é o rigor desse relato do Portugal de meados do século XX. Há um saber que cheira a terra. É notório, como fonte fundamental de conhecimento, o contacto com as populações locais, com a expressividade de uma terminologia própria da vida quotidiana das pessoas, dos trabalhadores. O seu saber rigoroso e erudito não provinha apenas da leitura e do contacto com os grandes mestres da geografia europeia da época, vinha muito, também, desse demorado trabalho de campo e de proximidade com as pessoas. Não foi apenas o mundo rural que entrou em declínio, mas a própria ciência geográfica vai também assumir novas direcções. (continua)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (2/8)

Casa de Orlando Ribeiro em Vale de Lobos. 1997
Não tenho presente a data precisa, mas suponho ter sido no final do ano de 1995. Tinha proposto a José Mattoso o desenvolvimento uma obra, em vários volumes, baseada na imagem fotográfica de registo do território e do tempo longo em Portugal. Aproximava-se a data da inauguração da Expo' 98, dedicada ao oceanos, e a minha ideia era realizar um conjunto de exposições e de edições sobre o território português, numa altura, em que, mais uma vez na história nacional, o País se voltava para fora. Numa fase mais avançada da nossa pesquisa e do meu trabalho de recolha fotográfica, José Mattoso sugeriu a participação de Suzanne Daveau, mulher do Orlando Ribeiro. Deslocámo-nos a sua casa em Vale de Lobos, para apresentar o projecto. Foi nesse dia que conheci Orlando Ribeiro. Já se encontrava com uma saúde débil, mas mantinha o olhar vivo de uma curiosidade que dos seus livros emanava. Mas esta visita à casa de família de Orlando Ribeiro foi marcante também por outro aspecto. Na altura, o meu trabalho de campo já estava muito avançado, já tinha percorrido a quase totalidade do Portugal Peninsular, em canseiras difíceis de exprimir e, de repente, parecia que todo esse mundo se encontrava sintetizado naquela casa. Era Portugal inteiro que ali estava em lombadas de livros, mapas nas paredes e outros objectos relacionados com as memórias e o ofício de geógrafo, como a sua câmara fotográfica, os cadernos de campo ou uma prancheta forrada a papel milimétrico usada para desenhar. Foi a partir deste universo pessoal que, mais tarde, propus a Suzanne Daveau o desenvolvimento de um trabalho relacionado com a casa de Vale de Lobos, que viria a ser editado pouco tempo depois, pouco depois da conclusão de Portugal - O Sabor da Terra. Nessas fotografias procurei fixar a presença vestigial de Orlando Ribeiro. (continua)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Bosque de Sombras Perfumadas (1/8)


Capa da 5ª edição, de 1987, sobre desenho e apontamentos em caderno de campo de Orlando Ribeiro



Em resposta a um convite que me foi dirigido por Suzanne Daveau, para escrever um texto para o catálogo da exposição que se encontra atualmente na Biblioteca Nacional de Portugal, escrevi Bosque de Sombras Perfumadas. São palavras da minha aproximação à obra de Orlando Ribeiro, que começou com a leitura de Portugal - O Mediterrâneo e o Atlântico, uma das obras literárias que mais marcou o meu percurso pessoal e profissional. Irei apresentar aqui a totalidade do texto em oito fragmentos, sempre acompanhados de imagens.
Na segunda metade da década de 1980 começava a interessar-me por Portugal, pelo seu espaço físico, pela paisagem, pelas formas de povoamento e pela arquitectura, motivo pelo qual me encontrava na cidade do Porto a estudar. Sonhava já com viagens pelas regiões mais inóspitas do nosso território. Na altura, os guias de Portugal não se exibiam com abundância nos escaparates das livrarias, como hoje acontece. Tinha comigo dois volumes do Guia de Portugal, de Raúl Proença e Santana Dionísio, que trouxera de casa de meus pais, mas agora o que eu procurava era uma geografia ou um estudo sobre o território nacional. Vivia na altura num quarto alugado, numa água-furtada de um prédio antigo, na Avenida Rodrigues de Freitas, bem perto da Escola de Belas-Artes, como então era conhecida, onde funcionavam os dois primeiros anos do curso de Arquitectura. Um dia, haveria de escrever a data da aquisição - 15 de Dezembro de 1987 - saí de casa para ir ver o que podia encontrar na livraria Leitura. Passei pelo Jardim de São Lázaro, atravessei a Praça dos Poveiros, desci a Rua Passos Manuel; depois dos Aliados subi até chegar, finalmente, à Rua de Ceuta. Na livraria procurei a temática geográfica, que ficava no piso superior, num espaço que era, então, exíguo e denso de livros. Uma lombada cor-de-laranja chamou-me a atenção: Portugal - o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro. Não conhecia a obra e ouvira falar muito vagamente do autor. Chegado ao meu quarto, que não teria mais de seis metros quadrados, onde cabia pouco mais que uma cama e uma pequena secretária, onde um rebordo de alumínio me impossibilitava de desenhar, deitei-me e comecei a ler. Tenho ideia que era um fim-de-tarde. Mergulhava numa leitura e iria marcar os meus anos seguintes de uma forma indelével - e que ainda hoje me acompanha - não apenas nas minhas viagens, mas também nos períodos em que trabalho sobre as centenas de milhar de fotografias que entretanto recolhi, desde meados da década de oitenta, do século passado, até ao presente. Todo o meu trabalho documental em fotografia de Portugal viria a ser marcado por aquela leitura fascinante e por outros livros de Orlando Ribeiro, que procurei mais tarde e que lia com o mesmo entusiasmo. (continua)