quarta-feira, 29 de maio de 2019

Mochila

[Caminhar oblíquo 03] Antes da partida, em processo de sistematização de todo o conteúdo da mochila, também na tentativa de reduzir ao máximo aquilo que levaria comigo, fotografo cada elemento.
— Tenda (uma tenda individual, que já utilizo há quase duas décadas, baixa e leve, cujo único inconveniente é não ter espaço, quando montada, para me sentar no seu interior);

— Dois sacos-cama leves (utilizarei apenas um em noites mais amenas e os dois quando o frio se fizer sentir).
— Colchão de meio-corpo;
— Mudas de roupa, e roupa para dormir;

— Almofada insuflável;
— Poncho para a chuva;
— Escova e pasta de dentes (uma bisnaga pequena a apontar apenas os dias estimados em campo) e dois palitos;

— Protetor solar;

— Chapéu;

— Pequeno saco com primeiros socorros, como adesivo, pensos rápidos, analgésicos;

— "Cartão" tipo canivete suíço, com vários utensílios, como uma lâmina, pinça, alfinete, tesoura entre outros;
— Sabonete, pequeno (que haveria de não utilizar, pois os banhos seriam sempre muito sumários e com a preocupação de não poluir com fosfatos as águas ocasionais de que me servia);

— Lenços de papel;

— Óculos;

— Documentos (cartão de cidadão, cartão multibanco e carta de condução) e algum dinheiro (85,00 €);
— Cartografia com implantação de todo o itinerário (transportei comigo uma cópia da carta militar de Portugal, escala 1/25000, reduzida e, cada folha, cortada em 6 partes por forma a formar um, quase, quadrado. Este quadrado seria depois dobrado em dois e andava no bolso das calças para fácil acesso). O verso da cartografia, não impresso, serviria para tomar apontamentos de campo;
— Esferográfica Bic, com quatro cores;

— Lanterna (frontal);
— Telemóvel (para ser usado com muita moderação, uma vez que a bateria teria que durar os entre 15 e 17 dias estimados para o percurso);

— Kindle (o mais leve e versátil "livro" de que pude dispor, um pequeno luxo, que pode parecer dispensável);
— Câmara fotográfica, lente de 50mm, 224Gb em cartões de memória, 4 baterias suplementares (foi estimada uma bateria para cada três dias de viagem, para um limite de cerca de 7.500 fotografias, ou 500 imagens por dia).
— Relógio;

— Duas garrafas para água, uma de 1,5 litros e outra com metade dessa capacidade (em função dos locais a percorrer, onde estime encontrar, ou não, água, assim doseio a quantidade que transporto comigo);

— Alimentação para 8 dias de caminhada (24 sandes com diferentes conteúdos em função da conservação dos alimentos - os primeiros dias incluem vegetais frescos, como alface e tomate - 20 maçãs, bolachas doces e salgadas, chocolates e barritas. Tudo é rigorosamente contado e ingerido sempre de acordo com o previamente estipulado, em termos de horário. A ideia base é não passar demasiada fome, mas é prevista alguma perda de peso,
— O quadro completa-se com a roupa do corpo, em que o calçado assume uma importância relevante.


segunda-feira, 27 de maio de 2019

28 de abril 2019

[Caminhar oblíquo 02] Um marco geodésico assinala um ponto elevado. O Penedo Durão, não longe de Freixo de Espada à Cinta, é um lugar que, simultaneamente, revela e oculta uma realidade geográfica singular. O rio Douro é um dos elementos mais vincados na estruturação do território português. Vindo de montante, com a direção nordeste-sudoeste, o rio abriu, ao longo de milhões de anos, um profundo sulco sobre terras graníticas, planálticas. Ao “dobrar” o Penedo Durão o rio inflete na direção nascente, como se procurasse agora o caminho mais curto para o mar. Poucos quilómetros à frente, na foz do rio Águeda, o rio deixa de fazer fronteira entre Espanha e Portugal e passa a navegar em território português. A constituição da matéria geológica das suas margens também se altera significativamente. Do granito, do profundo canhão fluvial, passamos para as terras de xisto, com as margens de inclinações menos acentuadas e onde vamos encontrar uma civilização da vinha e do vinho. O Penedo Durão é, assim, uma rótula que articula diferentes paisagens, diferentes mundos. Quando estamos no marco geodésico pode não ser evidente esta variação, mas lentamente começamos a perceber que este ponto é como um farol que põe em diálogo mundos diferentes.
É aqui o ponto de partida para uma viagem que quer traçar uma linha oblíqua sobre o espaço português. É um farol sem luz ao contrário de esse outro que será o destino deste caminhar, o Cabo da Roca. No fundo esta é uma viagem entre dois pontos notáveis entre os quais cabe um país inteiro.

Dado o adiantado da hora da partida, eram cerca de 18 horas, o objetivo deste primeiro dia de caminhada seria a aproximação a Barca d’Alva. Partia de uma cota de 730 metros de altitude para descer cerca de 600 metros, até ao nível das águas do Douro, a rondar os 130 metros. Quase todo o percurso seria feito por estradas de terra e o atravessamento de alguns olivais. Depois tomaria a estrada nacional 221 que, após o atravessamento da ponte Almirante Sarmento Rodrigues, estaria em Barca d’Alva. Já estava a noite feita aquando da passagem da ponte. Dois barcos turísticos estavam atracados. No seu interior pessoas jantavam. O atravessamento do Douro seria como que o abandonar a civilização e mergulhar numa viagem com muitos quilómetros pela frente. Foram mais uns minutos de caminhada, apenas para deixar de ouvir os motores das embarcações, que permaneciam em funcionamento, e procurar um local para passar a noite. No escuro, em solos próximos de um rio, com inclinações mais ou menos acentuadas, nem sempre é fácil encontrar uma área plana para montar a tenda. O sítio não era perfeito mas tinha silêncio e imaginava já a paisagem da madrugada.




















Dia: 28 de abril de 2019, domingo
Lugar referência: Barca d'Alva
Pernoita: Barca d'Alva
Quilómetros percorridos: 17
Quilómetros acumulados: 17
Concelhos atravessados: Freixo de Espada à Cinta; Figueira de Castelo Rodrigo
Cartas militares: 142
Fotografia inicial: dg896784, 17h51
Fotografia final: dg897183, 21h15
Duração trabalho fotográfico: 3h24
Fotografias: 400
Somatório fotografias: 400
Fotografias selecionadas: 48 (12,0%)

Penedo Durão. Freixo de Espada à Cinta. 28 de abril de 2019



Rio Douro. Freixo de Espada à Cinta. 28 de abril de 2019

Rio Douro, Barca d'Alva. Figueira de Castelo Rodrigo. 28 de abril de 2019

Barca d'Alva. Figueira de Castelo Rodrigo. 28 de abril de 2019

terça-feira, 21 de maio de 2019

Caminhar Oblíquo

No dia 28 de abril domingo, às 18h, iniciava uma viagem pedestre no Penedo Durão, Poiares, Freixo de Espada à Cinta. O objetivo seria o de atravessar uma longa diagonal montanhosa do centro de Portugal e chegar ao Cabo da Roca, Colares, Sintra. Esta é uma linha que divide o Portugal Atlântico, a norte, daquele outro meio país, a sul, sob influência climática da bacia do Mediterrâneo. Iria percorrer essa linha imaginária que, de forma indelével, distingue duas realidades que se entretecem num território relativamente pequeno mas com uma extraordinária diversidade paisagística. Este percurso de limbo, será um espelho disso mesmo.
Quinze dias após a partida, no dia 12 de maio, por volta das 14h30, chegava ao Cabo da Roca. Para trás ficavam 530 km percorridos numa viagem solitária de acentuada dureza, não apenas pela distância percorrida, as noites no campo ou pelo peso da mochila imposto pelos apenas dois reabastecimentos alimentares durante todo o percurso, mas também pela dificuldade de alguns troços atravessados, ou pelo clima a que não faltou o sol intenso e o calor, a chuva persistente, a neve ou o nevoeiro.
O únicos apoios que viria a ter seriam prestados por dois grandes amigos. O Luís Oliveira Santos viajou de Aveiro para se encontrar comigo em Viseu, onde resido, e me transportou para o ponto de partida, próximo do local onde o rio Douro deixa de ser fronteira entre os dois países Ibéricos e passa a correr em território português. O segundo apoio foi prestado no fim da viagem. O João Abreu foi ter comigo ao Cabo da Roca e deixou-me em Queluz. Embora tenha tido a disponibilidade destes e de outros amigos para apoio durante a caminhada, foi desde o início um objetivo a independência e autonomia desta travessia. Mesmo o uso de telemóvel estava extremamente limitado, uma vez que dispunha apenas de uma carga de bateria para todos os dias passados no campo. As comunicações seriam usadas para contactos esporádicos, orientações de recurso, ou para pedir ajuda no caso de acidente em lugar inóspito, contando que tivesse rede.
Foi uma viagem de solidão, um exercício pontual de afastamento a um mundo concreto diverso e disperso. Foi a voz silenciada, imersão em pensamentos, o percorrer toda uma vida em fragmentos de alegria e tristeza, condensada em passos de silêncio. Foram as noites ao relento sob a abóbada celeste e o despertar, na madrugada escura, ao som do chilrear dos pássaros invisíveis. Eram as noites mal dormidas, o cansaço extremo, as dores nos pés e nas pernas antes do adormecer. Era o reerguer-me, sempre com uma irracional determinação, para um novo dia.
Este é o relato sumário dessa travessia, da sempre procurada, na terra, reinvenção, redescobrerta, de um país. Talvez mais do que qualquer questão cultural ou identitária relacionada com o habitar de uma terra ao longo de sucessivas gerações que se perdem num tempo longo, este é também um processo de diálogo com essa mesma terra, com um regresso impossível a uma condição animal em que as angústias decorrentes de uma consciência racional, que se serve da linguagem simbólica e da tecnologia, se esbatem perante o continuado espanto de estar vivo, de descodificar o mundo visível, de atribuir nomes e significados às coisas, de tomar a consciência de um universo de iguais em que nos integramos e não nos distinguimos de qualquer outro ser, de uma árvore, de um inseto, de uma penedo, de uma nuvem.

Itinerário percorrido entre o Penedo Durão e o Cabo da Roca.