sexta-feira, 21 de junho de 2019

9 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 14] Este viria ser o dia mais duro de toda a caminhada. Acordara com o tempo seco, se bem que coberto por nuvens relativamente baixas. Uma primeira dificuldade seria a passagem de Casal de Vale de Ventos para sul, no sentido longitudinal da serra, o lugar está completamente esventrado por uma pedreira de grandes dimensões. Já na altura chovia um pouco, mas não o suficiente para me impedir de fazer algumas fotografias do povoado, e depois também, pontualmente, da pedreira, dos grandes blocos calcários. Mas a Chuva viria a intensificar-se quando caminhava sobre a área mais desabrigada da serra. Uns poucos pinheiros eram os únicos elementos que se elevavam do solo. Os pés, que até aqui tinham permanecido secos, estavam agora completamente encharcados. Houve um momento em que tive mesmo que parar por se acentuarem as dores nas pernas já a acusarem algumas horas de caminhada, que começara às 6 horas da manhã. Num solo molhado sentei-me sob a copa de um desses pinheiros sobreviventes a todos os incêndios. Havia ali uma qualquer sensação de mínimo conforto, mas a chuva permanecia cortante. Ingiro alguma coisa. Talvez quinze minutos depois retomo a caminhada. Não muito mais tarde começo a atravessar áreas de pedreira em laboração. Pesados camiões passam por mim, sinto a vibração no solo. Parecia, cada vez mais, estar num processo de aproximação a uma condição animal. Quando entramos num estado de abstração, quando ficamos indiferentes perante os estados do clima. Deixava de sentir qualquer sofrimento, como se já nada tivesse a perder. Era o reencontro com as dimensões duras da vida sobre as quais não temos o mínimo controlo. Estava livre, entregue à resistência, à não-desistência, à força do próximo passo. A água escorre pelo rosto. Continuo. A chuva haveria de parar e, não muito mais tarde, amainou mesmo. O dia permaneceria sombrio até escurecer. Tinha o conteúdo da mochila seco e isso garantia um mínimo de conforto para a passagem da noite, ainda que, na manhã seguinte, tivesse que voltar a vestir a roupa molhada.

Serra dos Candeeiros, Porto de Mós. 9 de maio de 2019

Quando, extenuado, chego ao Alto da Serra, sigo o itinerário que havia desenhado no mapa. Caminho cerca de um quilómetro e meio até me deparar com uma gigantesca cratera. Uma pedreira barrava-me o caminho. Na carta militar, muito desatualizada, havia por ali passagem. Agora não havia caminho possível. A paisagem calcária é especialmente castigada por esta indústria extrativa, seja para as rochas ornamentais, para os passeios das cidades, para as britas, seja para as cimenteiras. Mas como se tudo isto não bastasse, há uma nova e séria ameaça no horizonte. 
Casal de Vale de Ventos, prox., Porto de Mós. 9 de maio de 2019

A prospeção de lítio está a avançar em vários pontos do país. O panorama é muito preocupante. A procura de elementos para integrar as baterias, sobretudo para essa indústria emergente dos automóveis elétricos, promete causar estragos consideráveis na paisagem. Se por um lado a eletricidade provém de fontes de energia limpas (vamos fazer de conta que em Portugal não existem centrais de queima de carvão como sejam as do Pêgo e do Carregado), por outro lado há os danos colaterais provocados por outras fontes de energia, todas elas com consequências severas sobre a paisagem. O risco que se corre é mesmo a da destruição de extensas áreas, destinadas agora exclusivamente à produção de energia elétrica. Há um imenso território que pode desaparecer e com ele pedaços, muitas vezes ricos, de biosfera, de biodiversidade, onde vivem muitas espécies das quais dependemos muito mais do que aquilo que poderíamos imaginar. Tem que haver uma defesa da Natureza e, a par desta, a educação no sentido da mudança de hábitos de consumo, a todos os níveis. Mas desaparece também a memória de tempos não muito recuados de uma ruralidade que, em condições de extrema dureza, acabou por desenvolver soluções de relação com a terra, que são hoje um notável exemplo de integração e de sobrevivência. São memórias que nos constituem como povo, que de algum modo explicam algo do presente e de um processo de desertificação humana que queremos reverter. O que poderá desaparecer são as soluções, longamente maturadas, de quem nos antecedeu. Não é apenas o passado que vamos destruir, é, em grande medida, soluções para um futuro breve que se vão apagar da superfície da terra.
Vale da Pedreira, Alto da Serra, Porto de Mós. 9 de maio de 2019

Esta viagem é também um olhar para esse país distante mas bem real, tabuleiro de tensões imanentes. 
Serra dos Candeeiros, Porto de Mós. 9 de maio de 2019

Do Alto da Serra sigo então na direção de Rio Maior. Antes de chegar a esta cidade desvio para Freiria e sigo na direção de Bocas, um local “sobrevoado” pelo IC2. O rio Maior cava aqui um vale encaixado. Constato que a pedreira que me tinha impedido de seguir o caminho previamente traçado tem neste local o seu limite sul. São vários quilómetros de uma imensa cratera. Posteriormente sigo na direção de Bairradas. A chuva continua a cair. De Casais da Serra vou até Venda do Freixo e depois Gouxaria. Paro um pouco em Alguber. Já se faz tarde. Caminho na direção do Cercal, que fica já no sopé da serra de Montejunto, que será a última montanha deste itinerário. Ficará para a manhã seguinte. Procuro um local de pernoita. Mais uma vez estou num eucaliptal.
Alto da Serra, Porto de Mós. 9 de maio de 2019

Bocas, Rio Maior. 9 de maio de 2019

Alguber, prox., Cadaval. 9 de maio de 2019



Dia: 2019/05/09, quinta-feira
Lugar referência: Serra dos Candeeiros
Pernoita: Alguber, prox., Cadaval
Quilómetros percorridos: 39,2
Quilómetros acumulados: 423,8
Concelhos atravessados: Porto de Mós; Alcobaça, Rio Maior; Caldas da Rainha; Cadaval
Cartas militares: 317; 327; 339; 351
Fotografia inicial: dg901908, 06h36
Fotografia final: dg902248, 19h26
Duração trabalho fotográfico: 12h50
Fotografias: 341
Somatório fotografias: 5465
Fotografias selecionadas: 86 (25,22%)

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