sábado, 15 de junho de 2019

6 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 11] Depois de uma noite mal dormida, levantei-me e iniciei a marcha. Estava no nono dia de caminho. Já tinha passado o ponto médio da viagem, tanto do tempo que dispunha, como da distância a percorrer. Dormir bem ou mal, já me parecia relativamente indiferente. A dureza do caminhar sobrepunha-se a qualquer eventual sonolência. Esta apenas a poderia sentir numa paragem mais demorada, quando aliviasse as dores nos pés. 
Serra de São João, Figueiró dos Vinhos. 6 de maio de 2019

Arrumo a tenda e os sacos-cama, tudo meio molhado, e avanço para o novo dia. Atravesso Ferraria de São João. É cedo. Não encontro ninguém. A aldeia tem a marca de “Aldeias do Xisto”, nota-se uma preocupação em construir as casas de acordo com processos tradicionais, pelo menos na aparência das paredes exteriores. Há ainda casas que destoam do conjunto pela sua arquitetura, pelos seus acabamentos ou volumetria, mas talvez um dia tudo esteja mais uniformizado, como esteve num passado de pobreza. Procura-se qualquer coisa de cenográfico, ou apenas uma imagem de arquitetura que nos liberte de uma modernidade descontrolada que avança informe pelo tempo e pelo espaço. Esta arquitetura tradicional é como um porto seguro para um ambiente visual pacificado, reconciliado com os tempos do equilíbrio, da relação próxima com a terra.
Ferraria de São João, Figueiró dos Vinhos/Penela. 6 de maio de 2019

Prossigo a caminhada. Deixara para trás as eólicas e encontrava-me a descer, por estrada. Estava numa paisagem de transição do xisto para o calcário. Ao fim de cerca de 7 quilómetros deparo-me com uma autoestrada. A linha norte-sul definida pela A13 parece marcar a fronteira entre dois mundos diferentes. Vinha do alto das montanhas e de uma ruralidade integrada na natureza, para uma ruralidade de cariz mais urbano, mais interligada entre si, em paisagens de cotas mais baixas. 
Abrunheira, Figueiró dos Vinhos. 6 de maio de 2019

Chego a Avelar, no concelho de Ansião. Aqui haveria de fazer o primeiro reabastecimento alimentar. Estava no largo da igreja. Ligo o telemóvel, o que só fazia de dois em dois dias, envio algumas mensagens para três ou quatro pessoas que me acompanhavam à distância. Consulto a caixa de correio eletrónico e a previsão meteorológica. Terei chuva nos próximos dias. Estava no nono dia de caminhada e com a mochila consideravelmente mais leve em relação ao dia da partida. Agora, depois de passar por um supermercado, iria voltar a sentir um pouco mais de peso. De qualquer modo, três dias depois previa passar por Porto de Mós. Aí voltaria a reabastecer uma última vez.
Avelar, Ansião. 6 de maio de 2019

Doravante não mais teria declives tão longos e acentuados para vencer. Adensavam-se as marcas de povoamento humano e a estranheza de tantos gestos que se materializavam em inusitadas construções e desarranjos. É a paisagem contemporânea, definida em gestos de liberdade, construída, não raras vezes, sobre uma tremenda falta de cultura arquitetónica, sentido de espaço comunitário, noção de equilíbrio, de qualquer geometria que trace uma linha sensível e delicada.
Serra do Mouro, Ansião. 6 de maio de 2019

A paisagem mais humanizada, de algum modo, torna mais complexa a forma de a registarmos fotograficamente. Há estímulos de natureza muito diversificada. Há detalhes surpreendentes e inusitados. Pensava, ocasionalmente, na linha que já tinha percorrido, como se esta, pelas fotografias, ficasse desenhada na terra, ziguezagueante. O intrincado desta linha tinha uma sedução: percorrer um território vago. Tenho uma especial gratidão por essa construção humana, tecnológica, que é a fotografia. Encontro na fotografia uma forma de expressão dos lugares, e do tempo que os transforma, especialmente conseguida. Talvez seja o melhor modo de falar do espaço, de o representar mesmo não sendo isso possível, será, pelo menos, o modo mais fácil e acessível. Depois, queiramos ou não, o tempo também fica nas imagens. As imagens fotográficas são objetos planos, ambíguos e dúbios. Uma fotografia, seja de que natureza for, fala-nos de várias ordens de tempo. Mesmo que este não esteja retratado na imagem, por ser um qualquer detalhe com um nível de abstração elevado, esse tempo estará na ótica utilizada, na tecnologia, no processo de impressão, no carácter do olhar de quem a produziu. Mas há ainda uma questão que me liga a esta linha desenhada num mapa. Continuamos, no âmbito da reflexão sobre a natureza da imagem fotográfica, a fazer uma separação clara entre a fotografia artística, nobre, e a fotografia documental, o parente pobre. A linha da viagem, desenhada no mapa, tem uma beleza própria, é sugestiva, desafiante, algo enigmática. Este é também o retrato desse imenso espaço que fica entre a fotografia dita artística e a fotografia documental. A linha do mapa é muito redutora em relação à realidade, assim é esta fronteira entre a arte e o documento. Das cumieiras das montanhas vemos o infinito, o território de ninguém. Entre o documento e a arte temos o espaço de uma indizível liberdade. É o território do descomprometimento em relação aos interesses instalados, dos rótulos redutores, dos jogos de poder e exclusão. Mas como a linha, este é um espaço de solidão, da experimentação de uma certa radicalidade, de limite, de estar à beira de um abismo e poder cair. Uma linha é um risco. E o risco é aqui quase como uma compulsão e uma fatalidade que tem que ser habitado. É a viagem, maior, da vida.
Monte da Ovelha, Ansião. 6 de maio de 2019

Depois de atravessar as terras de Avelar dirijo-me à Serra do Mouro, uma pequena localidade no sopé das elevações cársicas de baixa altitude de que me aproximo. Daqui subo para a Serra do Casal Soeiro e, na continuidade, para o Monte da Ovelha. Depois da Portela de São Lourenço, seguir-se-iam a serra do Castelo e a serra dos Ariques, ambas com uma vegetação muito densa. Em Marzugueira já estava na base da serra de Alvaiázere, a mais elevada desta paisagem. Decido contornar esta montanha calcária por poente, pela serra Pequena. Volto a estar em lugares menos povoados e a vista é muito abrangente. Não muito mais tarde estarei a atravessar o rio Nabão. O Sol já baixava no horizonte.
Serra Pequena, Alvaiázere. 6 de maio de 2019

Quando o dia chega ao fim estou no meio de um eucaliptal. Da floresta das eólicas passava agora para a aridez desta paisagem aromatizada. Este parecia ser o retrato de identidade de um Portugal interior contemporâneo que ninguém quer conhecer, mas que todos, aparentemente, sabem da sua existência.



Dia: 2019/05/06, segunda-feira
Lugar referência: Avelar
Pernoita: Granja, prox., Ourém
Quilómetros percorridos: 40,4
Quilómetros acumulados: 311,8
Concelhos atravessados: Figueiró dos Vinhos; Penela; Ansião; Alvaiázere; Ourém
Cartas militares: 264; 263; 275; 287
Fotografia inicial: dg900508, 06h11
Fotografia final: dg901034, 20h35
Duração trabalho fotográfico: 14h24
Fotografias: 527
Somatório fotografias: 4251
Fotografias selecionadas: 115 (21,82%)

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