sexta-feira, 21 de junho de 2019

10 de maio 2019

[Caminhar oblíquo 15] Com a chuva sou obrigado a guardar a câmara fotográfica. Caminho de mãos livres, rosto à chuva. Por breves instantes, penso em registos que não posso fazer, imagens que fixo temporariamente em pensamento. Reflito sobre algumas contradições deste caminhar. Se por um lado há como que o desejo de regresso a uma condição antiga, de uma integração mais plena na Natureza, por outro lado há também a pulsão de fixar as mil imagens desse processo simultâneo de aproximação e afastamento, agarrar o tempo. As câmaras fotográficas atuais são computadores, muitas vezes com uma notável capacidade de processamento de dados. Esta complexidade tem vindo a crescer e as câmaras dos telemóveis são um bom exemplo disso. Uma questão que me coloco é se não será necessário um mercado aberto, fortemente concorrencial e global para produzir, e tornar acessíveis, estes dispositivos que nos transportam ao futuro breve. Não creio que uma sociedade fechada possa produzir estes equipamentos. Talvez seja mesmo necessária uma sociedade tendencialmente liberal para que este movimento, de desenvolvimento tecnológico, se desenvolva, o qual, no entanto, não deixa de trazer consigo enormes contradições e desigualdades. Há uma mesma compulsão para o “bem” e para o “mal”. São os dois gumes de uma faca. Problemas que se resolvem sempre à beira do abismo. E talvez estejamos mesmo todos mais perto de algo que não vai correr bem.
Cercal, prox., Cadaval. 10 de maio de 2019

A chuva continua mas com menor intensidade. Ao meio-dia, quando já me encontrava perto do topo da serra de Montejunto, deixara mesmo de haver precipitação. Agora era o nevoeiro a envolver o lugar. Estava na última montanha. Era cumprido mais um objetivo desta caminhada: percorrer todo este sistema orográfico entre a serra da Estrela, que tinha deixado há sete dias, e agora Montejunto, que fora, num passado não muito recuado, bem mais fria, como o atestam os poços de gelo.
Serra de Montejunto, Cercal, Cadaval. 10 de maio de 2019
O nevoeiro confere àquela paisagem uma realidade singular, apelativa. É como se o observável se transformasse em desenho, numa representação de si próprio. Há suavidade nos contornos, a visibilidade que se perde gradualmente. Vão-se revelando, a cada passo do caminhar, novos aspetos da paisagem. O silêncio parece acentuar-se. Há alguma inquietude nos lugares ocultos. A floresta é um desenho novo e complexo. 
Serra de Montejunto, Cercal, Cadaval. 10 de maio de 2019

Alguém morreu. Num eucalipto estão depostas flores, alguns dizeres, mensagens tocantes de carinho e de saudade. Há a imagem de um jovem com roupas desportivas, de ciclista, que ali terá tido um acidente fatal. Questiono-me se estaria só ou acompanhado, como tudo teria acontecido, quando. Não era a primeira vez que encontrava estas memórias de morte na estrada, estas evocações, composições de flores que convocam presenças ausentes, a dureza de um momento trágico que, num ápice de segundo, transformam radicalmente mundos familiares. Numa caminhada longa e solitária a morte é um pensamento que aflora à superfície do quotidiano desamparado: a possibilidade de uma queda, ou de subitamente me sentir mal, qualquer coisa que possa acontecer na solidão do espaço aberto. Não deixa de haver uma noção do perigo, no caminhar num limbo de instabilidade, mas a vida tem uma enorme força e uma grande resiliência. Esta é a resposta de um corpo que se move sobre uma terra austera, que nos exige esforço para nos construirmos. É nesse movimento de procura que encontramos o sentido de estar vivo, que pode ser o cumprimento de uma linha de espaço-tempo desenhada num mapa. E essa linha, como o contorno da sombra projetada do corpo sobre o solo, tem a extensão de toda a permanência efémera. Há um tempo longo, plástico, com diferentes durações dentro de si, continuidades fragmentadas articuladas em espaços desconexos. A eternidade é um momento no pensamento breve do medo. Criamos narrativas e a literatura dos sonhos coletivos. Na solidão, passo sobre passo, questionamos os mais belos poemas. 
Serra de Montejunto, Cadaval. 10 de maio de 2019

Serra de Montejunto, Cadaval. 10 de maio de 2019

O alto da serra de Montejunto está coberto de nevoeiro, vento e frio. Descanso um pouco entre as ruínas de um antigo convento que nunca chegou a ser concluído. A serra tem uma série de vestígios de povoamento muito antigo como necrópoles neolíticas ou fortificações castrejas.
Serra de Montejunto, Alenquer/Cadaval. 10 de maio de 2019

Casal do J. Roque, Torres Vedras. 10 de maio de 2019

À medida que desço a serra, o tempo vai melhorando. Pouco depois observo que o cimo da serra está limpo. Já não havia nevoeiro. Permanecem nuvens no céu, mas não haverá mais chuva. Caminho, sensivelmente, na direção nascente-poente. Passo a Casais da Foroana, depois Vila Verde dos Francos. Segue-se Casais da Fonte da Pipa, Lapaduços e Aldeia Grande. Estou agora no vale do rio Alcabrichel, que não estava nos meus planos iniciais. É mais um desvio motivado pela cartografia desatualizada. Prossigo para Maxial, Ermigeira, Monte Redondo. Após Lapas Grandes começo a procurar um local para passar a noite. Os terrenos são aqui muito abertos e expostos. Deixo a estrada e sigo por caminhos de terra até às margens da ribeira da Macheia, afluente do rio Sisandro, que não corre longe daqui. Monto a tenda junto a uma vinha. Era o final do 13º dia de caminhada.
Quinta das Lapas, Lapas Grandes, Torres Vedras. 10 de maio de 2019

Matacães, prox., Torres Vedras. 10 de maio de 2019




Dia: 2019/05/10, sexta-feira
Lugar referência: Serra de Montejunto
Pernoita: Matacães, prox., Torres Vedras
Quilómetros percorridos: 39,8
Quilómetros acumulados: 463,6
Concelhos atravessados: Cadaval; Rio Maior; Azambuja; Alenquer; Torres Vedras
Cartas militares: 351; 363; 362; 375
Fotografia inicial: dg902249, 06h26
Fotografia final: dg902878, 20h31
Duração trabalho fotográfico: 14h05
Fotografias: 630
Somatório fotografias: 6095
Fotografias selecionadas: 144 (22,86%)

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