terça-feira, 12 de novembro de 2024

Figurações

[Lugares livres 33] As pessoas, figurações humanas, pouco aparecem nestas imagens. As marcas deixadas na terra, ao longo de muitas gerações, são a expressão profunda do seu, nosso, mundo. As populações são quem edifica as paisagens, quem constrói o mundo em que vivemos. Quando visitamos e fotografamos uma aldeia somos, por vezes, recebidos com desconfiança, mais raramente, com alguma agressividade. Há a suspeita pontual de que uma recolha fotográfica pode não ser feita pelos melhores motivos. Há a noção de intrusão num quotidiano rural onde poucas descontinuidades acontecem ao longo do ano. É muito provável que nunca ninguém tenha fotografado o espaço de muitas aldeias, pelo menos alguém vindo de fora, sem aviso prévio, sozinho. Para quem fotografa não pode deixar de, também, pressentir uma certa devassa. É certo que o espaço é público e de livre acesso, mas não deixa de ser verdade que em pequenas comunidades, uma certa intimidade não fica apenas dentro de casa e estende-se pelo espaço circundante à habitação, muitas vezes pelos campos fora. As fotografias ganham essa dimensão de proximidade a algo que vulgarmente não vemos. É o sentido do humano no seu despojamento.

Parque de Santiago, Viseu, 2017

 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A caixa

[Lugares livres 32] Ficou a noção de que muito mais haveria para fotografar mas também que se fotografou muito mais do que, em cada momento, estava inicialmente previsto. A terra tem este fascínio de que quanto mais nos detivermos na sua contemplação, mais detalhes se vão revelando. Abrimos uma Caixa de Pandora. O entendimento dos gestos dos povoadores primevos, o conhecimento da geologia, das ciências da vida, por básico que seja, abre-nos as portas do sobressalto, da inquietação, das pontas de um universo interminável cujo apelo é difícil resistir. Difícil é, também, tomar certas decisões, optar por um trilho em detrimento de outro. Em cada bifurcação há a inevitabilidade de perdas.

Parque de Santiago, Viseu, 2023

 

domingo, 10 de novembro de 2024

Memória (Arquivo)

[Lugares livres 31] Este trabalho não partiu de uma análise histórica ou geográfica de Viseu, não partiu do desejo de fotografar os principais elementos patrimoniais da cidade e do concelho. Não se quis, de alguma forma, repetir abordagens mais convencionais. Não se procurou o belo-óbvio. Foram sinalizadas todas as povoações do concelho em cartografia. Havia um conhecimento prévio do território de Viseu, decorrente de anteriores trabalhos, mas não se quis partir para o terreno com uma lista de edifícios a fotografar. Sem dúvida alguma que é fundamental o conhecimento de uma bibliografia base sobre o concelho, mas há um entendimento que é quase sempre esquecido. É a perceção de que a terra é uma fonte “documental” de uma riqueza ilimitada. Há hoje uma tendência para procurar o conhecimento nos livros e em documentos, sobretudo escritos. O contacto com a terra é desconfortável, é muitas vezes duro, moroso, exige disponibilidade, esforço físico. Mas é também uma forma de nos construir, de nos “prender”, agarrar, a um tempo arcaico que vamos pressentindo ser o sentido da nossa existência como espécie, como comunidade evolutiva. Na terra está desenhado todo o nosso passado nos seus traços mais essenciais. Há muitos dados que não nos são acessíveis apenas pela leitura das paisagens, outros que apenas se tornam visíveis pelo demorado olhar que sobre eles repousamos.

Lordosa, Viseu, 2002

 

sábado, 9 de novembro de 2024

Início de caminho

[Lugares livres 30] No Caramulo, estava a conhecer, a percorrer pela primeira vez, um país imenso. Em Montemuro cruzara-me com um rebanho transumante, que viera da serra da Estrela três meses antes, numa viagem em busca dos pastos de altitude, onde a humidade permanece, resiste aos mais quentes estios. O Douro é um rio imenso feito de água e vinho, de tragédias e intermináveis lutas, a expressão de uma geografia dura que pontualmente se manifesta num caudal avassalador e destrutivo, a fúria a caminho do imenso oceano, no fim da terra, ou o apontar para mais longínquas viagens. Na Estrela, numa viagem ocasional com amigos de uma juventude vital, encontrei o frio imenso, ou os limites claros das possibilidades de habitação dos lugares. Mas foi também o fascínio do branco que desce dos céus, povoa a terra, que vislumbrei o enunciar da arte como diferença de humanidade na interpretação de possibilidades de sobrevivência. Desta montanha nevada descemos o rio Mondego. Passamos por Coimbra, uma cidade de memórias, prosseguimos para esse mesmo mar que encontráramos na foz do Douro, ou do Vouga, em Aveiro, que passa tão perto, a norte da cidade que agarra todos estes lugares. Viseu é uma paisagem convergente que liga geografias distantes.

Castelo Velho, Vila Chã de Sá, 1996

 

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Mondego

[Lugares livres 29] Mas o rio Mondego é também a evocação de Coimbra, uma cidade com a qual Viseu estabeleceu sempre uma relação cúmplice, de ligação a serviços que nos remetem já, de uma forma muito evidente, para a urbanidade, para o sentimento de pertença a uma entidade nacional vasta. Uma cultura antropológica que se foi construindo ao longo de séculos que, sem se desprender, se foi progressivamente libertando da terra, no desenho muito próprio de uma afirmação de humanidade.

Coimbra, 1996

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Para sul

[Lugares livres 28] Para sul, para territórios meridionais, caminhamos em direção à luz, à maior claridade das terras mais quentes. O vale do rio Mondego, que tem origem na serra da Estrela, define uma linha oblíqua e também a presença de outras serras que desenham linhas de céu bem visíveis da cidade de Viseu. O Açôr e a Lousã, juntamente com a serra da Estrela, constituem um eixo montanhoso que separa o Portugal de influência climatérica atlântica, da presença mediterrânica, a sul. Foi o geógrafo Orlando Ribeiro quem, de forma luminosa, descodificou estas duas áreas geográficas distintas, a que podemos somar um terceiro grande espaço climático, continental, que tem já as características do interior da Península Ibérica onde a presença oceânica é muito mais ténue.

Serra da Lousã, 1996

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Perímetro montanhoso

[Lugares livres 27] Viseu ocupa uma área geográfica, relativamente plana, rodeada de montanhas. A norte ergue-se, para lá de Castro Daire, depois de atravessarmos o vale do rio Paiva, a serra de Montemuro. A partir do seu topo, a 1383 metros de altitude, pressentimos o poderoso rasgo telúrico rio Douro, que marca, que estrutura uma parte muito significativa da paisagem portuguesa. São como novos mundos que aqui, para lá destas fronteiras, têm início.

Serra de Montemuro, 1988

 

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Estrela

[Lugares livres 25] A serra da Estrela ocupa um lugar de destaque numa geografia simbólica de Portugal. É o ponto mais elevado de todas as serras continentais. Os seus quase 2000 metros de altitude passam uma parte do inverno cobertos de neve, como uma paisagem antiga a lembrar as últimas glaciações que assolaram estas paisagens e que nelas deixaram impressas mas marcas de rios de gelo, que nos ajudam, agora, a perceber a fisionomia da orografia contemporânea, o motivo das suas formas, dos seus rios, a estrutura do território.

Serra da Estrela, 1996

 

domingo, 3 de novembro de 2024

Partir para

[Lugares livres 24] Estes são lugares de partida para outras viagens, para o interminável conhecimento da terra, a contínua reprodução das mais antigas migrações quando, há seis, sete dezenas de milhares de anos, a partir de África, nos expandimos pelo planeta inteiro. Terão sido vários os motivos de tão arriscado movimento. Certamente que a procura de recursos foi um dos mais relevantes, mas também a enorme curiosidade pelo conhecimento da terra incógnita.

Calçada de Coimbrões, Coimbrões, Viseu, 1996


 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Horizonte (Paisagens distantes)

[Lugares livres 23] As paisagens distantes, com as quais estabelecemos uma relação visual ou que, de algum modo, pressentimos, que fazem parte de uma geografia íntima, mesmo que não sintamos as águas do Douro ou do Mondego. São rios distantes, fronteiras aquáticas, tal como é essa maior fronteira, o grande mar Atlântico, visível do alto da serra do Caramulo, aqui tão visível da cidade.

Rio Douro, 1993